pelo suor silencioso
Carta #28 || escrita vagarosa; ansiedade criativa; meditação de si & do texto; aprender para destruir
Desta terra e deste estrume nasceu esta flor.
Machado de Assis, “Memórias Póstumas de Brás Cubas”
Bloomington, 25 de março de 2025.
I
Escrever bem não é escrever rápido.
Peço licença pra usar uma metáfora gasta: escrever é plantar. Primeiro pôr a semente, depois regar, garantir que esteja pegando sol, regar, colocar fertilizante, regar, conversar com a planta, regá-la, alimentá-la, nutrí-la. Tudo isso demora: é vagaroso, pede a sua paciência e sobretudo a sua disponibilidade de espera. É preciso acolher a lentidão. Depois de muito trabalho é que a beleza se mostra. Só aí a flor vai nascer.
Escrever é mais ou menos isso. Só que parte de um movimento interno (a vida criativa de uma ideia que floresce) e não de um movimento externo (a vida vegetal de um grão que brota). Para regar nossas ideias, alimentando-as e nutrindo-as, precisamos ler & escrever & respirar.
II
Esta ansiedade absurda, esta corrida—escreveu Olavo Bilac em um soneto que amo, já discutido nessa newsletter alguns anos atrás. Quando li isso pela primeira vez, aos dezessete anos, me senti mirando um espelho: a ambição da carreira literária, o desejo de criar, as tensões envoltas nesse sacrifício. Mais que tudo, senti a ansiedade, a corrida, emoções que desde então marcam minha existência no mundo—escritora jovem com muitos projetos. Sempre tive uma ânsia impaciente de realizar as coisas, dar concretude às ideias, e nada melhor pra isso do que publicar livros: transformar linguagem abstrata em um objeto que pode ser tocado, lido, compartilhado. Por isso, publiquei minha primeira obra aos 20 anos, uma coletânea de poemas juvenis, evidentemente sôfrega pelo desejo de “estrear”. Hoje, dez anos depois, consciente da minha ansiosa pressa passada, advogo pela calma nos projetos literários. A febre intensa do desejo é boa, ela nos motiva a produzir, mas não é sustentável a longo prazo. E eu quero continuar por muito, muito, muito tempo.
III
Há um mês tenho meditado diariamente. A meditação acontece sobretudo por meio da consciência de estar respirando. Inspirar, expirar. Inspirar, expirar. Performar a atividade mais banal e mais constante da nossa vida em absoluta concentração, presença, atenção. Seres vivos precisam respirar para continuarem existindo. Ora, a Literatura é, também, uma entidade viva, em movimento & mutação. Por isso, nada mais natural que Ela ter o seu próprio respiro: nunca considero um texto pronto antes de ele passar pelo seu tempo de gaveta. Em termos práticos, isso significa terminar de escrever e deixar a criatura sozinha, respirando, longe dos olhos ansiosos da criadora. (Isso vale também pras cartas que envio aqui.) Depois de um tempo—que pode durar dias, semanas, meses, anos—, aí sim voltamos ao texto antigo, que agora irá nos parecer novo. Ele não mudou: nós mudamos. Ambos precisávamos de respiros; quem escreve e quem é escrito. Depois desse espaço saudável de distância, a Literatura pode plenamente se realizar. O cordão umbilical obsessivo da criação é cortado, e resta um artefato estético, ser vivo independente que não precisa mais do seu autor. E testemunha da vida que frutifica quando podemos, livremente, respirar.
Outra coisa de que eu quisera persuadir a mocidade é que a precipitação não lhe afiança muita vida aos seus escritos. Há um prurido de escrever muito e depressa; tira-se disso glória, e não posso negar que é caminho de aplausos. Há intenção de igualar as criações do espírito com as da matéria, como se elas não fossem neste caso inconciliáveis. Faça muito embora um homem a volta ao mundo em oitenta dias; para uma obra-prima do espírito são precisos alguns mais.
— Machado de Assis, “Instinto de nacionalidade”
IV
Já escrevi aqui sobre ser ex-poeta e minha obsessão por sonetos, a forma poética perfeita. Na adolescência, escrevia vorazmente, em todos os momentos do dia, no banheiro, no quarto, durante as aulas (peço perdão aos meus professores—não há nada mais estimulante mentalmente que o espaço de uma sala de aula). Como todo adolescente é poeta, assim eu era, escrevendo tresloucadamente sobre tudo que me acontecia: descobertas sentimentais, ansiedades do futuro, dificuldades de comunicação. Os poemas feitos nessa época, sobretudo os sonetos, eram exercícios de linguagem que muito me ensinaram sobre a FORMA do ofício, já que o CONTEÚDO era o óbvio que eu via e vivia, sem pesquisa nem projeto. Sem saber, investia na minha própria formação estética de escritora, buscando aprender com mestres—queria assimilar tudo, seus erros, seus acertos e sobretudo seus riscos.
V
Antes de experimentar, dominar o básico. Entender o campo em que se quer entrar, em todas as suas complexidades e nuances, para depois pensar: onde me encaixo? Ou melhor, no espírito da transgressão: onde posso deformar este espaço? A liberdade é usada com sabedoria depois dos aprendizados da constrição. Afinal, para destruir a tradição, é preciso primeiro conhecê-la, por meio da pesquisa e do repertório. Ir bebendo no copo dos outros, como diz Mário de Andrade no “Prefácio interessantíssimo”. No ensino médio, como tática de estudo para a prova de literatura, lembro de fazer um exercício de escrever o “mesmo” poema segundo estéticas de escolas diferentes. O “mesmo”, aqui, era repetir as imagens de uma historinha cishétero clássica (eu-lírico masculino chorando a rejeição de sua musa), só que mimetizando a linguagem de cada estilo literário. Fiz a versão barroca, imitando Gregorio de Matos; a versão arcadista, imitando Claudio Manuel da Costa; a versão romântica, imitando Álvares de Azevedo; a versão realista, imitando Machado de Assis; e a versão modernista, imitando Oswald de Andrade. Nesse gesto, iniciado pela diversão e pelo desafio, acabei adquirindo armas valiosas: copiar para aprender, aprender para destruir.
Tenho paixão pela técnica. [...] Acredito que é da técnica que nasce o verdadeiro estilo. Não há atalhos nesse caminho. Katherine Mansfield citada por Ana Cristina César.
VI
Michelangelo não esculpiu Davi com um só golpe. Da pedra dura à escultura precisa, muito tempo & muito suor. Machadadas atrás de machadadas em busca do flash eternizado das curvas humanas. A emoção da artista está em ver surgir da matéria bruta um diamante. Corro o risco de repetir a tão parnasiana Profissão de fé do príncipe dos poetas, mas você que lê essa newsletter já sabe da minha quedinha por Bilac. Me fascina a precisão da frase exata—cada verso de um soneto seu, a maciez da pele de Davi. Imagino o trabalhador suando sua pena pela madrugada, andando em círculos e falando sozinho até achar a cadência perfeita de um quarteto. Rabiscando, apagando, martelando. Claro que Bilac se compararia a um ourives: seus poemas são joias.
Igualmente labutados, há outros textos menos joias e mais cacos dispersos, quebra-cabeças nos convidando à sedução. Aí estão os suores de Hilda Hilst, Carolina Maria de Jesus, Clarice Lispector, Virginia Woolf, Roland Barthes. Esses me interessam ainda mais.
Você não começa de cara escrevendo coisas boas. Você começa escrevendo merdas e pensando que são coisas boas, e depois gradualmente você melhora. É por isso que eu digo que um dos traços mais valiosos em alguém é a persistência. Primeiro, esqueça a inspiração. Hábito é mais importante. O hábito vai te sustentar, você estando inspirada ou não. O hábito vai te ajudar a finalizar e polir suas histórias. A inspiração não. O hábito é a persistência na prática. O primeiro passo, claro, é ler. É surpreendente quantas pessoas pensam que querem ser escritores mas não gostam de ler livros. O segundo passo é escrever, todos os dias, você gostando ou não. Foda-se a inspiração. Esqueça o talento, se você tem ou não. Porque no fundo isso não importa... Não sinto que tenho algum talento literário particular, de verdade. Isso é tudo que eu queria fazer, e segui o meu desejo, em vez de conseguir um emprego fazendo algo que me desse mais dinheiro, mas que me faria miserável. Isso é uma das coisas que tento tirar da cabeça de escritores jovens, que você precisa esperar, é tudo uma questão de sorte, um raio vai te atingir e aí sim você terá um maravilhoso livro campeão de vendas... A fortuna favorece mentes preparadas. Se você desenvolveu o hábito de prestar atenção às coisas que acontecem ao seu redor e a si mesma, então, sim, você será atingida pelo raio. Esqueça a inspiração, porque ela provavelmente será uma razão para não escrever, tipo "não posso escrever hoje porque não estou inspirada". A característica mais valiosa que todo aspirante a escritor pode ter é a persistência. Apenas continue, siga aprendendo o seu ofício e siga tentando... Não importa o quão cansada você fique, não importa se você sentir que não consegue fazer isso, de algum modo, você consegue. Para renascer de suas próprias cinzas, a Fênix precisa primeiro queimar.
— Octavia E. Butler, tradução BKO
VII
Para escrever um bom poema em verso livre, primeiro escrever trezentos sonetos. Dominar o ritmo, a forma exata, precisa, a rima, o som. Depois destruir tudo e brincar com os escombros. Para escrever um romance com segurança, ter antes escrito três que permanecem enterrados na gaveta. Antes eu ficava triste, pensando em todo o trabalho que nunca chegará aos olhos de leitores como “desperdício” do meu tempo e do meu suor. Mas mudei radicalmente essa visão limitada, utilitarista e capitalista. Os textos esquecidos são talvez mais importantes do que os lembrados. São os livros-sementes, feitos não para serem publicados, não para brotarem e verem a luz do dia, mas para prepararem e fertilizarem o terreno para os outros que virão depois. Isso que você escreveu tá uma bosta? Que ótimo, a merda é o melhor fertilizante que há.
Nunca plantei nada: meu dedo não é verde. Não tive nem terei filhos: tornei-me estéril. Mas escrevi livros. São eles que nascem da minha terra e do meu estrume.
carta na garrafa
respostas de leitores às últimas cartas
Em tempo: melhor episódio de toda a história do Rádio Cia.
— Cleiton Fernandes, 20.02.2025
Quem conhece o oceano não se contenta com a profundidade ilusória da piscina.
Vem nadar comigo!
Se gostou, me conta; se não, também. É só responder o email. ❤️
com amor, Bruna K
p.s.I. leia as outras cartinhas aqui.
p.s.II. compre O presidente pornô autografado aqui.
adoro sua newsletter! eu tenho andado angustiada pelas pressas impostas pelo mundo, mas a verdade é que sou lenta e quieta. obrigada por me lembrar de retornar ao meu ritmo!
Mto especial essa newsletter, Bruna. Eu estou passando justamente por isso. Obrigada