ver com olhos livres
Carta #26 || o feitiço contra os feiticeiros & o legado dos maus selvagens
Que tal? Não se esqueça porém que outro virá destruir tudo isto que construí.
Mário de Andrade, 1922
Bloomington, 27 de fevereiro de 2025.
I
O maior legado deixado pelos modernistas é nos ter dado ferramentas para destruí-los.
Por meio de uma devoração crítica e transgressora de autores canônicos do romantismo, por exemplo, eles nos ensinaram a usar a mesma estratégia contra suas próprias obras. Mário de Andrade, no “Prefácio Interessantíssimo” à Pauliceia Desvairada (1922), na epígrafe desta carta, já antecipava a futura transgressão, consciente de que o patrimônio modernista poderia ser destruído ou ressignificado pela História, com H maiúsculo — exatamente o que podemos verificar no trabalho do artista Denilson Baniwa. No quadro ReAntropofagia (2019), Baniwa serve a cabeça de Mário em uma bandeja de palha, ao lado de um exemplar de Macunaíma (1928), mandiocas, milhos e outras representações da natureza nacional. Que delícia!
II
Se antes os modernistas eram os agentes devoradores da literatura clássica e buscavam reescrevê-la com uma mirada subversiva, hoje eles se tornaram cânone absoluto, e os papéis se invertem: quem antes comia agora é comido. Assim, Baniwa relê a tradição clássica nacional por uma perspectiva indígena, preparando um banquete pronto a ser digerido por ele e seus parentes — os antropófagos originais, primeiros habitantes desta terra que os invasores batizaram, depois, de Brasil.
III
Tudo isso estava na minha cabeça enquanto lia a excelente biografia Oswald de Andrade: Mau selvagem (Companhia das Letras, 2025), de Lira Neto. Lira é um pesquisador incansável, investigador rigoroso e exímio narrador, e nos conta a vida de um dos nossos maiores polemistas com uma pena afiada. A cena de abertura da biografia não podia ser outra: entramos nesse universo pela ereção original, o primeiro pau duro do pequeno Oswald, imagem perfeita para apresentar tão erótico personagem. O futuro modernista, afinal, se criou no descompasso entre os rigores do catolicismo familiar e as descobertas da sexualidade prematura. Uma criança que dormia no ‘meinho’, entre os pais, tornou-se um jovem perdulário e arrogante, um adulto cheio de ideias & projetos & amantes, e um idoso endividado que buscou influenciar a nova geração até seus últimos suspiros.
IV
Com certo privilégio da minha parte, ouvi várias histórias sobre isso da boca do meu amigo Heitor Martins, professor, crítico, poeta e editor da Geração Complemento, hoje com 91 anos. Heitor foi um dos últimos jovens a visitarem com regularidade o velho Oswald, nos meses finais da sua vida em 1954. Ele me conta que foi à casa da lenda antropófaga e encontrou um homem ambíguo: metade-glória pela consciência de ser um grande pensador, metade-decadência pelo peso dos anos e das dívidas. Oswald, porém, jamais recusava suas visitas, e o recebia sempre com sorrisos e livros autografados de presente — primeiras edições assinadas, joias arquivísticas que estão hoje no acervo especial da Lilly Library, aqui em Bloomington. O Heitor, aliás, publicou um livro de ensaios sobre tão polêmica figura, o ótimo Oswald de Andrade e Outros (1973). Me impressiona profundamente esta imagem: um jovenzinho de 21 anos, mineiro recém chegado a São Paulo e toda a carreira pela frente, visitando um monumento nacional monstruoso nos seus últimos dias — dois escritores amantes do Brasil e suas contradições, um em cada ponta da vida e ao mesmo tempo lado a lado, enfrentando a morte que os rondava.
V
Adoro como o Lira Neto, que foi meu professor no curso “Como escrever histórias de vida: escrita criativa em biografia”, lê os documentos que servem de base à sua pesquisa. Ele, um autêntico anarquivista, pra usar o termo do meu outro professor Reinaldo Marques (já escrevi sobre isso nesta carta), nota o aspecto das caligrafias dos manuscritos, prestando atenção nos borrões, rabiscos, assinaturas. O objetivo do biógrafo, disse o Lira no seu curso, é repovoar o passado. Mas mesmo que já conheçamos aquele assunto de cabo a rabo, a biografia pede uma mirada sempre fresca, radical, inovadora. E para isso, é preciso seguir o conselho de Oswald de Andrade, por ele levado à risca: ver com olhos livres.
VI
Em Mau selvagem, também adoro o gritante contraste entre os fatos documentados e as histórias propagadas pelo biografado, que, não podemos esquecer, é um ficcionista safadíssimo. Lira é consciente d’As tantas lendas da mitografia pessoal, construída por Oswald, em seus relatos memorialísticos, e as contrapõe com o que de fato os arquivos nos contam. Um exemplo ótimo: Oswald escreveu em suas memórias Um homem sem profissão: sob as ordens de mamãe [título magnífico] que trouxe o manifesto futurista de Marinetti debaixo do braço quando voltou da Europa. Porém, seus escritos da época, sobretudo no seu jornal O pirralho, exibiam um apoiador da arte como retrato fiel da realidade visível, pensamento oposto às vanguardas. Frase do Lira: Oswald de Andrade era inimigo da coerência.
VII
O que Oswald de Andrade foi: precursor da teoria decolonial; intérprete do Brasil; escritor genial; intelectual inteligentíssimo; intelectual ignorantíssimo e arrogantíssimo; herdeiro irresponsável; clássico esquerdomacho; sedutor incorrigível; amante não-monogâmico; homem abusivo com mulheres e meninas ao seu redor; pai carinhoso; pai ausente; agitador cultural; homofóbico; divulgador da cultura brasileira no exterior; burguês; comunista; egocêntrico; problemático; divertido; ousado; inimigo de si mesmo; sempre remando contra a corrente, mesmo quando a corrente era em seu favor.
O que Oswald de Andrade não foi: bom marido; fiel; cuidadoso; organizado; feminista; razoável; professor da USP; chatoboy; personagem plano; figura facilmente esquecível.
No fim, ninguém o definiu melhor que Manuel Bandeira: Do Oswald, só há dois meios de se defender: ou fazer mais blague e mais intriga do que ele ou então afastar-se. Ambas as coisas são muito difíceis, porque: que sujeito engraçado! que sujeito cínico! que filho da puta gostoso!
rastros da navegação
trabalhos pelos sete mares
Como escritora, dei meus dois centavos sobre o modernismo no livro de poesia Oswald pede a Tarsila que lave suas cuecas (2019, Letramento), nessa vibe de destruí-los com as ferramentas que eles mesmos nos deram. A colunista Carol Schittini escreveu um texto ótimo relacionando o livro com o carnaval, no site Trevous, vale ir lá conferir!
Essa carta dedicada à complexa herança dos maus selvagens vem como continuação do papo maravilhoso que tive com o Lira Neto e a Stéphanie Roque no podcast Rádio Companhia. Conversa de alto nível sobre esse personagem tão fascinante! O episódio se chama “Oswald de Andrade: além do modernismo” e pode ser ouvido em todas as plataformas de áudio. Se ouvir, me conta o que achou?
carta na garrafa
respostas de leitores às últimas cartas
Olá, Bruna! Ainda aqui, ávido acompanhante dessa aventura sua de escrever, tecer ideias em linhas retas que fazem tantas curvas. Imenso prazer, sem erotismo, ou pouco, quem sabe, como seus sonhos (in)conscientes(?), em ouvir suas narrações quase sonâmbulas. Há um quê de torpor lúcido que acontece no despertar que, ainda em seu estado quo, permite vislumbrar sem tantas racionalizações dos sonhos, ligá-los aos nossos desejos, nossos medos, nossos vários eus que nos percorrem durante o dia e, como que um espirito foragido, durante a noite. Adoro, também, registrar as idas a esse mundo sem limite, sem fronteira, empolgante e instrutiva a sua carta!!! Gratíssimo!
— Leonardo Luis Corrêa, 18.II.2025
Amei esse texto! Também costumava registrar meus sonhos, quando lembrava. Atualmente tenho tido uma sensação estranha de lembrar de algo do sonho, mas não conseguir nomear nem conectar com nada conhecido. Fica só uma sensação do sonho, mas nada do conteúdo. Quando eu registrava tinha muitas histórias boas e inesperadas, vou tentar retomar esse hábito. Obrigada por compartilhar esse texto!
— Camila Vasconcelos Sampaio, 19.II.2025
Quem conhece o oceano não se contenta com a profundidade ilusória da piscina.
Vem nadar comigo!
Se gostou, me conta; se não, também. É só responder o email. ❤️
com amor, Bruna K
p.s.I. leia as outras cartinhas aqui.
p.s.II. compre O presidente pornô autografado aqui.
Ando numa fase super oswaldiana e consequentemente amando seus textos, o podcasts e essa cartinha! "Que filho da puta gostoso!"