memórias póstumas da ex-poeta | posthumous memoirs of an ex-poet
Carta #21 || bilingual edition || ascensão & queda da Poesia
To read this letter in English, please visit this link. This is the second bilingual edition of Letters to Sailors, a self-translation effort to reach my non-Portuguese-speaking audience.
Não faças versos sobre acontecimentos.
Carlos Drummond de Andrade, “Procura da Poesia”
Bloomington, 10 de dezembro de 2024.
I
Para ser ex, é preciso antes ter sido. Logo, não se nasce ex-poeta, torna-se — criando uma nova identidade pautada por um luto & uma ausência. Não sou, mas já fui.
II
Antes de se entregar à bandalheira deliciosa da pornografia, Hilda Hilst escreveu Amavisse. Esse é o título do seu “último livro de poesia a ser publicado”, numa “despedida da literatura séria”, uma espécie de aposentadoria. [Depois ela lançou outros, é claro: era tudo parte da performance.] Amavisse significa: a nostalgia de um dia ter amado.
III
A poesia como porta de entrada nas drogas, quer dizer, na literatura. [Não me canso dessa piada.] Isto ou aquilo, da Cecília Meireles: uma daquelas joias que lemos na infância e que nunca se apagam do nosso espírito, persistindo não como lembrança, mas como amuleto. Na adolescência, o drama do clássico amor-juvenil-não-correspondido ganha sustança e contorno e complexidade com as lamúrias irônicas de Álvares de Azevedo & os sonetos perfeitos de Olavo Bilac. No fim do dia, não amava aquele rapaz que me rejeitava: amava o sentimento provocado pelos poemas lidos [e escritos. Tantos, tantos, tantos. Centenas, milhares: só o exagero dá conta da intensidade juvenil]. A poesia tem essa bruxaria, própria de toda ficção — nos dá ferramentas de linguagem para criar a nossa própria realidade.
Quais poetas marcaram sua infância e adolescência? Me conta aqui nos comentários.
IV
Poesia, querida, obrigada por me ensinar tudo que sei sobre ritmo & forma, conhecimentos hoje essenciais para as aventuras em prosa. Na minha trajetória, a Poesia é isto: professora rigorosa, absorvente, sedutora. Todos os dias, durante os anos formativos, escrevia cinco ou seis poemas. Primeiro, sonetos, até alcançar a marca dos quinhentos; depois, em posse dos feitiços aprendidos pela disciplina, a festa do verso livre. Só conhecendo a tradição é possível quebrá-la.
Aprendi o que era liberdade confinada em catorze versos decassílabos.
V
Todo adolescente é poeta. Ecoando Machado de Assis — aos quinze anos, tudo é infinito.
Cena da adolescência: trabalho oral de literatura, em grupo, sobre um poeta modernista. O escolhido: Vinicius de Moraes. Mergulho duradouro, dedicado, delicioso na obra do poetinha, dos sonetos & baladas até a dança magnética da palavra na bossa nova. No grupo, dois amigos e o rapaz-objeto da volúpia literária — queria escrever sobre a fantasia do beijo, não beijá-lo de fato; devoção muito mais linguagem do que corpo. A oportunidade. Ensaiar e performar um poema à turma, para encerrar a apresentação. O escolhido: Ausência. Falar com segurança os versos decorados — de cor, morando no coração —, mirando a visão do destinatário. Eu deixarei que morra em mim o desejo de amar os teus olhos que são doces. Ali a poeta sai do armário em público, apenas para morrer alguns anos depois. É da decomposição do seu cadáver que nasce, na mesma terra já tão adubada por decassílabos, a romancista que escreve esta carta.
VI
Não me entendam mal: apesar de ter [e tenho muitas] críticas sobre poetas e poesia, não sou contra o gênero. Apenas uma ex-usuária. Notem que aqui nem entro no assunto das oportunidades e do dinheiro, isso vale um longo ensaio sobre escolhas de carreira literária. Porque, veja só, escrever é uma carreira: um trabalho. O grande Sebastião Nunes me ensinou a ser ex-poeta e com os mestres não se discute, se aprende. Sem ter sido poeta, porém, nunca poderia escrever a prosa que escrevo, interessada na forma e na linguagem, às vezes mais do que no conteúdo [autocrítica constante]. Culpo e agradeço em igual medida a Poesia. Ela me ensinou a prestar atenção na estrutura, nos mecanismos linguísticos, som voz imagem, nas engrenagens da palavra. Mas me ensinou tão bem que fiquei obcecada por isso e vez ou outra me esqueço da tela por amar demais a moldura. Critico mas empatizo com os parnasianos. Hipócritas poetas — meus iguais, meus irmãos!
VII
A Poesia, tão afeita ao flash, pode ser feita nos intervalos do dia, sem compromisso, de fragmento em fragmento. O romance não. O romance pede dedicação & suor & fôlego. Cada poema é uma unidade independente, que para em pé sozinha, e pode fazer par com outras até formar a narrativa de um livro. Esse processo pode demorar semanas, meses, anos. Sem pressa. Pra ser sincera, nunca fui assim. Já escrevia poemas com o espírito e a disciplina da romancista: obsessivamente, em ciclos de projetos, orquestrando uma grande narrativa por trás que unia aqueles pedaços dispersos. Poétiquase (2015): por um fio, por um triz: quase-poeta, quase-poemas. Anticorpo (2017): o corpo do texto & da mulher, metalinguagem erótica. Oswald pede a Tarsila que lave suas cuecas (2019): diálogo & destruição do legado modernista, homenagem-crítica. Tinha um Pedro no meio do caminho (2019): ascensão & queda do império, a sombra eterna de um Pedro — de Pedro Álvares Cabral a Pedro Bial. Isso sem mencionar os projetos poéticos que nunca respiraram o ar de leitores, confinados em um sono profundo e silencioso na gaveta.
Talvez eu nunca tenha sido mesmo poeta, só demorei pra perceber.
ativando arrebatamentos
textos que têm me extasiado
Levante (2023): Filmaço. Tem: vôlei (amo narrativas com esportes, saudades Haikyu!!), grande elenco LGBTQIAP+ e não branco, debates sobre maternidade e aborto, Grace Passô. Só vejam.
Vanya (2024): o National Live Theater britânico “transforma” em cinema algumas peças e tive o prazer de assistir essa adaptação do clássico de Tchekhov, Tio Vânia (que aliás conheci na montagem genial do Grupo Galpão). Aqui, o padre da Fleabag (Andrew Scott) interpreta todos os personagens. Muito bom.
carta na garrafa
respostas de leitores às últimas cartas
Sabia que a primeira diarista da história se chamava Perpétua? 😁 Víbia Perpétua. Em homenagem a ela tenho que voltar a escrever no diário, e em homenagem também a você que me inspirou. Muitos beijinhossssssss!!!
— Sofia Perpétua, 09.10.2024 (aliás, a peça “Tanque”, escrita pela Sofia, é uma obra-prima e é semifinalista do prêmio Oceanos. Leiam!)
Engraçado que acabei de voltar do sacolão acompanhada por rúculas, abobrinhas, cenouras, salsinhas e bananas, e na espera do caixa tocava esta mesma música dos Backstreet Boys. 🙃Delícia de leitura, Bruna! Me lembrou uma série lotada de clichês que tenho adorado acompanhar: Only murders in the building. Tenho sentido vontade de escrever sobre BH, mas sempre vem uma inibição, um estranhamento, como se tudo já tivesse sido explorado num tiktok kkkk seu texto me inspira e encoraja! Beijo grande, Zazá
— Isabela Cavalcante a.k.a. Zazá, colagista maravilhosa, 26.11.2024
Quem conhece o oceano não se contenta com a profundidade ilusória da piscina.
Vem nadar comigo!
Se gostou, me conta; se não, também. É só responder o email. ❤️
com amor, Bruna K
p.s.I. leia as outras cartinhas aqui.
p.s.II. compre O presidente pornô autografado aqui.
que bom que te achei aqui ^^
textíssimo!
Que sensibilidade e delicadeza 🩷