literatura primeiro
Carta #25 || acordar & imediatamente escrever; alimentar um Sonhário; priorizar a Fantasia
O sonho é um lugar de veiculação de afetos.
Ailton Krenak, A vida não é útil
Bloomington, 18 de fevereiro de 2025.
I
Todos os dias, a primeira coisa que faço é escrever.
II
Talvez haja um certo exagero do estilo nesta frase, pois às vezes vou ao banheiro e lavo o rosto antes, mas logo me sento e alongo os músculos do pensamento. O objetivo é muito simples: alimentar meu recém inaugurado Sonhário [estou apaixonada por essa palavra] com as narrativas oníricas que habitaram o meu cinema particular durante a noite. É coisa de dez minutos ou menos, o tempo preciso de escrever um ou dois parágrafos apenas. Comecei a fazer isso há pouquíssimo tempo, mas o impacto e o prazer desse pequeno gesto são imensos.
Antes, a primeira coisa que eu olhava no dia era a tela do celular. Agora, é uma folha em branco.
III
Segurando a caneta, com toda a materialidade erótica e criativa desse ano, anoto a data no alto da página e começo a escrever tudo que me lembro dos sonhos, num exercício muito mais de memória que de estética. Me importo pouco com a estrutura das frases e mais com a transfiguração da lembrança em imagem. Isso pra mim é um passo enorme e dificílimo, esteta obcecada que sou. Então tem sido libertador. Ainda grogue de sono, não consigo refletir muito profundamente, e isso dá uma liberdade gostosa que não sentia há tempos ao escrever. Acordar a Escritora primeiro, antes da Dona De Casa, antes da Acadêmica, antes mesmo da Mulher. Esse despertar cotidiano me lembra dos votos que fiz comigo mesma há muitos anos, compartilhado aqui na newsletter sobre diários, e que renovo diariamente com esse esforço: não se esqueça que a escrita é o motor maior da sua vida, e portanto deve estar acima de todas as suas outras muitas ocupações.
IV
Um dia, estava combinando uma tarde de troca de leituras com a amiga e também escritora Laura Cohen. Às vezes fazemos isso: compartilhamos os rascunhos dos projetos que estamos trabalhando, e contamos com o olhar estrangeiro uma da outra. Nesse dia, eu tinha várias burocracias urgentes pra resolver, coisas que não davam pra esperar, e cancelei com a Laura. Um tempo depois de enviar a mensagem cancelando, porém, me corrigi: esquece, vamos encontrar sim. Literatura primeiro. E tivemos uma tarde deliciosa, trocando impressões e alimentando as pulsões das Escritoras ali presentes. O engraçado disso tudo é que hoje, alguns anos depois, não me lembro quais eram as tais burocracias urgentes, tudo que ficou foi esta frase, imortalizada num marcador de livros do Estratégias Narrativas: literatura primeiro.
A Laura escreveu sobre isso no instagram dela, um trechinho:
Fiquei com essa frase dela na cabeça: literatura primeiro. Falei que ia roubar pra eu fazer um marcador de livro, ou cartazes pra meus alunos: no meu trabalho, acabo sempre tendo que lidar com aquela pessoa que prefere lavar 3 panelas sujas de molho de tomate a priorizar a escrita, os livros, a literatura, como se ela fosse um luxo ou um capricho — ou porque, também, na literatura há as questões profundas com a gente, com nosso corpo, consciência, história, e escrever é bater a cara nessas questões. Literatura primeiro: o nosso direito, nossa função de produzir texto, desenvolver subjetividade, realizar na palavra.
V
O Sonho e a Literatura são irmãos. Ambos são narrativas fictícias, fantásticas, absurdas, que negam e desafiam a ditadura da Realidade. Ambos são dotados de liberdade total, em que se pode tudo e não há fronteiras: nem de tempo, nem de espaço, nem de dimensão. Ambos são criações da mente humana, com todos os seus defeitos e camadas de profundidade, medos e desejos, traumas e utopias. Ambos permitem imaginar outras linhas do tempo, diferentes possibilidades de futuro, caminhos que no duro compasso dos dias parecem impossíveis.
Sonho e Literatura se retroalimentam: são filhos da Fantasia.
VI
Perdemos contato com nosso mundo interior. Os sonhos são um portal privilegiado de contato do consciente com o inconsciente. São eles que trazem as imagens oníricas para o consciente. Sem eles, estamos navegando sem bússola. Nos sonhos, temos a liberdade de misturar ideias que, na vigília, não andam juntas, gerando novas ideias.
Gostei muito da fala do neurocientista e escritor Sidarta Ribeiro no Estadão, um poderoso chamado para que ouçamos as nossas narrativas internas e alimentemos o poder da nossa imaginação. Qual o último sonho que você teve? Me conta aqui nos comentários:
VII
Alguns trechos do Sonhário:
eu voava em total liberdade, nadando peito pelo ar. com força com fúria: em júbilo. a vista era cinematográfica, falsa, e por isso era mais absurdo que tudo se sentisse tão real. uma campina aberta com castelos coloridos e crianças brincando e voando como eu. fiz um esforço tremendo para sonhar que voava porque não estava conseguindo dormir, e quando abri os olhos e vi aquela vista genuinamente real, me emocionei. a mente humana é infinita. [07.II.2025]
atravessamos a avenida perigosa e quase fomos atropeladas, eu e a criança. ônibus ou uber? chegamos a uma casa de família que me acolheu nos braços. jantar com gays. no relógio, 2 horas da manhã e eu preocupada com meu sono. não lembro mais nada. menstruada. [10.II.2025]
uma festa que era na casa da minha vó mas também era na casa dos meus pais. nevou no quintal e a neve soterrou vários itens do meu arquivo. (que simbologia, hein, inconsciente?!) naturalmente me desesperei, pois amo arquivo e odeio neve. [12.II.2025]
em um restaurante com José Wilker, meu professor de sociologia do ensino médio e a Marie Curie. ao ver vários rostos conhecidos, me caiu a ficha que era um sonho. uma piscina nojenta radioativa e uma sensação de perigo. viagem no tempo. a impressão profunda de que tudo ali era o ensaio para a escrita de um romance. [15.II.2025]
Vai dizer que isso não é literatura?
carta na garrafa
respostas de leitores às últimas cartas
A relação de Mirella e Valéria entrou na minha cabeça quando li o romance [Caderno proibido, de Alba de Céspedes]. Não se espera nada de uma moça de 20 anos, espera-se tudo de uma mulher-esposa-mãe de 40. O quanto dessas expectativas e não expectativas dos séculos passados carregamos nós, mulheres de quase 30 do século XXI? Excelente cartinha na garrafa, obrigada por nos brindar com suas escritas e reflexões 🩷
— Laura Gomes, 29.I.2024
Quem conhece o oceano não se contenta com a profundidade ilusória da piscina.
Vem nadar comigo!
Se gostou, me conta; se não, também. É só responder o email. ❤️
com amor, Bruna K
p.s.I. leia as outras cartinhas aqui.
p.s.II. compre O presidente pornô autografado aqui.
Que delícia de carta! Li na cama, antes de dormir e talvez sonhar. Não tenho me lembrado dos meus sonhos recentemente.
Amei descobrir que a frase "Literatura Primeiro" é sua. A Laura Cohen (que tem as mesmas consoantes no sobrenome que eu) no podcast do Estratégias tem sido minha grande força pra escrever. Beijo, Laura, e obrigada! Foi bom ver que tem Bruna Kalil nesse processo também.
Por fim, honradíssima de aparecer na carta na garrafa 🩷
No meu sonho conversavamos em um dia comum, reprisavamos a vida real sem qualquer fantasia ficcional, com direito a gaiatisses variadas que me escapavam na urgência de vê-la sorrir. Quando acordei pensei no desperdicio que era gastar o lugar onde tudo pode com o cotidiano mais ordinário. De toda forma, mantive meu ritual e mandei mensagem pelo telefone:
Oi, sonhei com você. Está tudo bem?
Infelizmente não. Tenho coisas para te contar...
Me dei a diversão de florear o ocorrido, mas foi mais ou menos assim mesmo que aconteceu com uma amiga.
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Abração