diário querido, bálsamo & ferramenta
Carta #17 || há dezoito anos escrevendo diários, tenho maioridade no assunto
Através de tantas lacunas e tropeços, de tantas ausências e esquecimentos, vem sendo ele [o Diário], na verdade, o único itinerário válido da minha vida. — Lúcio Cardoso
Bloomington, 09 de outubro de 2024.
I
Querido Diário,
há dezoito anos que escrevo, com mais ou menos frequência, esse chamado. Chegou sua maioridade, Diário. Você me deu a mão nos últimos vislumbres da infância, foi parceiro fiel durante o exagero da adolescência, e hoje é bálsamo mental da vida adulta. Crescemos juntos, mudamos tanto, e você se metamorfoseou de uma lagartinha — espaço de desabafo pueril — para uma poderosa borboleta — arquivo, memória, análise, exercício de disciplina e de amor. Te escrevo porque quero me lembrar. Te escrevo porque não confio em mim.
II
Diário não é literatura. Pelo menos não enquanto ele brota da umidade dos dias — pode tornar-se, se houver reescrita e trabalho editorial. Não é o caso do meu Diário, que não é literatura porque não quero que seja, me esforço pra não ser. Nem sempre consigo, e vez ou outra surgem irrefreáveis pitadas de linguagem ficcional. Tento não me aborrecer com isso. Afinal, diários são antes de tudo texto, e o instinto de escritora vê toda página em branco como convite à sedução. Então pratico o gesto já conhecido pela Acadêmica e coloco a Ficcionista pra descansar. Mas, diferente do que falo para minha parte universitária — “aqui é um outro tipo de trabalho” —, o discurso para a Diarista é — “aqui não é trabalho, abaixe as armas e deixe só as ferramentas”. Tenho buscado reaprender a escrever sem os filtros que desenvolvi ao longo da última década escrevendo profissionalmente. N’O Diário, não quero criar uma narrativa, não quero contar uma história, e sobretudo não quero criar uma personagem.
Eu não sou uma personagem. Eu sou um ser humano.
III
Escrevo O Diário de maneira esparsa desde os 11 anos de idade. Há apenas um ano me comprometi a escrever diariamente de fato, não importa onde esteja ou o que faça. [Pensei em mentir, mas não vou. Hoje O Diário é um arquivo no google drive. Foi a saída contemporânea pra escrever de qualquer lugar, no celular ou no laptop, além de facilitar para encontrar as memórias do passado.] Essa constância é o compromisso de todas as noites com a Bruna que virá. Escrevo pra uma mulher que ainda não existe, lhe embrulhando o tempo em papel presente. O que vivo agora, passado para ela, joga luz ao futuro de nós duas. Quando leio as entradas de cinco, dez, quinze anos atrás, me reencontro comigo no âmago mais profundo que há. Não existe texto mais íntimo do que esse: feito do eu para o eu, a privacidade absoluta, a ausência de leitores. As páginas de diário sempre estão conosco nos momentos de mais alegria ou mais angústia. Principalmente, como fazem a maioria dos diaristas, quando só visitamos seu espaço nas horas de aflição, buscando desesperadamente um eco pra jogar as sensações e tentar aprender ouvindo elas de volta.
VI
Grandes diários que transcenderam a intimidade da sua feitura e nos arrebataram em público ao tornarem-se literatura: Diário do Hospício (1919-1920), Lima Barreto; Todos os Diários (1942-1962), Lúcio Cardoso; O observador no escritório (1943-1977), Carlos Drummond de Andrade; Diários (1947-1980), Susan Sontag; Quarto de despejo (1955-1960), de Carolina Maria de Jesus; Hospício é deus (1965), Maura Lopes Cançado.
Diários ficcionais que nos lembram da potência estética do gênero: o romance Memorial de Aires (1908), Machado de Assis; o romance-colagem-epistolografia-diário A Crônica da Casa Assassinada (1959), Lúcio Cardoso [sempre ele]; os poemas Cenas de abril (1979), Ana Cristina Cesar; o conto “A infiltração” (2022), de Laura Cohen Rabelo.
Qual outro você nos indica?
V
30.07.2007, 11 anos: OOOI DIÁRIO!!! Hoje eu tô precisando escrever mto para compensar as férias! Vi 2 filmes no cinema: Harry Potter 5 e Ratatouille! A gente viu o Pan do Rio e o Brasil ficou em 3º lugar geral! [...] Amanhã eu escrevo de novo e te conto as novidades, tá? No primeiro dia de aula, vou ficar meia hora escrevendo sobre as salas! Ih! já está tarde e tenho que ir dormir! Muitoooooos beijoooos, Bruna
21.07.2008, 12 anos: Oi Diário! Qto tempo! Me desculpe por ficar tanto tempo sem escrever! Aconteceu tanta coisa comigo! Quando eu entrei na 7ª série, eu jah tava mais madura e não tinha mais aquele amor platônico pelo G. [...] Ah! Meu time de futebol ganhou de 2 a 1 e de handball: primeiro jogo -> perdemos de 11 a 4 segundo jogo: ganhamos de 18 a 4! Medalha de ouro e prata! Yes!
09.08.2011, 15 anos: Minhas únicas companheiras são meu caderno e minha lapiseira.
15.02.2017, 21 anos: aprendo, cada dia mais, a importância do registro e dos diários. a memória, coisa viva, pulsante, também — como nós — respira e goza.
23.11.2020, 25 anos: tanta coisa pra escrever. tão pouco tempo. lendo o diário do Drummond e pensando. o diário como sistematização do pensamento, o diário como registro histórico, o diário menos como EU e mais como OUTRO. [...] O Diário é o testemunho da minha transformação de objeto para sujeito. [...] por muito tempo tive vergonha de admitir que escrevo diário. é uma obsessão egocêntrica, etc e tal. mas o EU também precisa se conhecer para conhecer o OUTRO. sou uma desconhecida pra mim. O Diário é minha tentativa de autoanálise em busca das minhas próprias particularidades. foda-se o Carlos.
24.10.2021, 26 anos: Lembre-se sempre de que a escrita é o motor maior da sua vida, e, portanto, deve ser levada a sério, mais sério que todas as suas muitas outras ocupações.
03.01.2023, 27 anos: anteontem o Lula tomou posse pela terceira vez, e levou todo o povo brasileiro consigo na subida na rampa. podia ter escrito isso no outro Diário (ele ficou com algumas páginas em branco) — mas o ano virou, meu desejo chamou um novo espaço, e há um prazer muito grande em iniciar um novo caderno. também penso que um pouco de silêncio faz bem pro texto respirar.
30.01.2024, 28 anos: Só sinto que estou vivendo se escrevo. E se não escrevo, parece que não vivi.

VI
Diários & cartas são irmãos: marcados pela subjetividade da narração em primeira pessoa, são textos privados dirigidos a um destinatário específico — no Diário, o próprio eu; na carta, um outro ou outros. Quando são lidos por nós, terceiros a quem aquilo não era endereçado, há uma transgressão de intimidade, uma violação da privacidade, um voyeurismo proibido. Por isso é tão bom ler o diário alheio e tão ruim quando leem o nosso. Imagem da infância: O Diário com um cadeado rosa de plástico; a chave escondida na gaveta de calcinhas.
VII
Escrever O Diário me lembra que a escrita deve ser, antes de tudo, prazer. Escrevo porque gosto, porque sinto paixão e alívio ao colocar desordenados pensamentos em ordem no papel. Manter o espaço d’O Diário como privado, intocável, torna-o sagrado: aqui não há trabalho, não há mercado, não há a excitação da publicação. Sem a pressão do holofote, a escrita pode ser apenas isto: fruição, ferramenta, fúria.
ativando arrebatamentos
textos que têm me extasiado
Pra ler rindo & pensando: Crítica e tradução (2016), Ana Cristina Cesar, coletânea na qual conhecemos as faces Crítica e Tradutora da celebrada Poeta. Amo ver Ana pistola descendo o pau com elegância em outros intelectuais.
Pra ouvir no repeat: o já clássico álbum PADRIM (2019), do FBC, obra prima que diz tanto sobre BH e sobre o Brasil.
Pra ver e citar em pesquisas: esse vídeo genial do Ora Thiago sobre Frankenstein e corpos transgressores. O Thiago é um dos pensadores hoje com os quais eu mais me alinho, parece que lemos e pensamos sobre as mesmas coisas (amo).
rastros da navegação
trabalhos pelos sete mares
Dei uma aula aberta sobre “Literatura & Erotismo”, grande tema das minhas pesquisas, no YouTube do Teatro da Fumaça, e a aula está disponível gratuitamente neste link.
A gigante Micheliny Verunschk premiou simbolicamente O presidente pornô no podcast Histórias Diversas, ao lado de Mata doce, da maravilhosa Luciany Aparecida. Recomendo muito todos os episódios do podcast, tem até uma entrevista comigo por lá.
Esse vídeo lindo e divertido da Camille, que leu O presidente pornô e depois deixou o livro de presente a uma pessoa desconhecida que será a próxima viajante ao Plazil.
carta na garrafa
respostas de leitores às últimas cartas
parabéns, bruna, embora tenha sido um pouco gatilho ler tantos prazeres cotidianos no exato momento em que brigo com uma burocracia bancária e acadêmica. riquíssima, muitas referências para explorar. e uma imagem: a de liam neeson como kinsey, antes de se acomodar no mesmo e repetitivo papel de macho vingador.
— Marcelo Sabbatini, 17.09.2024
Esse seu texto me animou. Eu tinha deletado meu Substack, mas ter visto sua chamada no Insta pra cá me trouxe de volta. Acho que vi no stories da Laura Cohen. Me deu vontade de te falar uma prática meio wtf, mas que muito me diverte. Escrevo diário no laptop. Sinto que não conseguiria decifrar a minha caligrafia se passasse um tempo longo após a minha escrita. De todo modo, esses diários tem o título carinhoso de Vomitodromo. A prática consiste em passado determinado tempo [6 meses, 1 ano], voltar lendo o que se escreveu, dessa vez pinçando fragmentos de sustos, absurdos, e coisas semi-poéticas. Em janeiro eu publiquei esses fragmentos com o título de Cancelamento de ruído, muito pelos fones novos com essa tecnologia anti barulho, que ajuda, mas aliena ao mesmo tempo. Esse sábado agora [21/9] lanço o segundo volume desse mini-projeto fragmentário. Eu quis vir aqui te contar isso, porque é um estranhamento ver esses fragmentos dialogando uns com os outros como uma forma de aproximações induzidas. [...] Enfim, obrigado por falar desse amorzinho por fragmentos, sempre construindo em cima de ruínas ruidosas que se levantam, ah como levantam.
— Eme de Paula, 18.09.2024, numa resposta que antecipou o tema dessa edição!
Quem conhece o oceano não se contenta com a profundidade ilusória da piscina.
Vem nadar comigo!
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com amor, Bruna K
p.s.I. leia as outras cartinhas aqui.
p.s.II. compre O presidente pornô autografado aqui.
Recomendo a coletânea de cartas do Jung, que embora não seja um diário, dá acesso a pensamentos muito profundo e íntimos sobre ele. A autobiografia dele é incrível também! A escrita dele é maravilhosa de se ler.