deus, o diabo, os homens
Carta #27 || aulas de direção, cinema novo e romantismo francês
sei tudo sobre crueldade. conheço Deus.
Hilda Hilst, Cartas de um sedutor
Bloomington, 11 de março de 2025.
I
Um homem esperançoso com o futuro sofre as últimas consequências da luta de classes e é por ela condenado. Aí ele se entrega a Deus — se tornando Seu soldado numa guerra santa. Outro homem paga, durante duas décadas, a pena amarga que este mundo dá aos pobres que ousam desobedecer às regras do dinheiro. Livre enfim, quase retorna ao inferno do trabalho forçado, mas no último instante é salvo. Aí ele se entrega a Deus — se tornando Seu soldado como narrativa de conversão.
De um lado, Glauber Rocha. Do outro, Victor Hugo.
II
Um dos maiores privilégios em estar numa universidade gringa é o acesso a tantos produtos culturais diversos e com certa facilidade. Em setembro de 2024, num sábado, o Indiana University Cinema exibiu a remasterização de aniversário de 60 anos de Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), que os ianques conhecem como Black God, White Devil (corre aqui, Haroldo de Campos!). No domingo, o IU Auditorium encerrou a temporada de Les Misérables, famoso musical da Broadway adaptando o romance homônimo de Victor Hugo, publicado em 1862. Em um dia de diferença, presenciei a força dessas duas histórias, conectadas pela devoção divina & pelas injustiças dos homens. Há obras de arte — as melhores, talvez— que se comunicam tanto conosco que imediatamente nos põe a pena na mão. Então escrevi essa carta que ficou na gaveta todos esses meses esperando ficar pronta: agora, ela chega até você.
III
Cena da adolescência: enfrentar duas maratonas simultâneas aos dezoito anos — tirar carteira de motorista e ler as 1500 páginas de Os Miseráveis. Em uma edição de dois tomos da Martin Claret, a única que conseguia pagar na época, a adolescente devora o romantismo francês no intervalo das aulas de condução. Ao mesmo tempo aprender a linguagem das placas de trânsito e as longas descrições do sistema de esgoto de Paris. Uma metáfora daquela mesma época, no primeiro semestre da faculdade de Letras, com o sempre gentil professor Mário Perini: não aprendemos como o carro funciona, aprendemos a dirigir o carro — com a língua devia ser a mesma coisa.
Victor Hugo foi meu professor de direção.
IV
Glauber Rocha na tela grande, como ele queria e como deve ser — cada enquadramento, uma obra-prima digna de ser emoldurada em museus. Aos pés do altar, a grande sombra do fuzil de Antonio das Mortes, falo & poder, contra a pequena sombra do punhal de Rosa, resistência & autodefesa; homem contra mulher, vida contra morte, deus contra o diabo, eis o X da questão. Glauber, lambuzando-se na genialidade do óbvio ululante, nos dá uma surra de imagens-símbolos. Diz sem dizer: mostra. Uma comunidade no topo dos montes, onde só o vento e as nuvens alcançam. Mais perto d’Ele. A violenta natureza do sertão, em sua crueza imponência, recusa-se a ser mero cenário — é sujeito com agência narrativa. E ainda, no meio do caos das tantas guerras da luta de classe, o erotismo pulsa: duas mulheres encontram sentido no espelhamento entre elas. Beijam os homens como se beijassem uma à outra. Depois de tanta secura, o mar: imagem eterna do desejo, coisa úmida por excelência.
V
No ensino médio, comprar o DVD de Os Miseráveis (2012, dir. Tom Hooper) com a certeza de que, no futuro, o usaria em sala de aula, como a professora que desejava um dia ser. Poucos anos depois, a oportunidade: uma aula sobre romantismo, o movimento que representa a adolescência da literatura [tudo é muito intenso e muito sofrido]. Fisgar os jovens com o que tinha te fisgado, na mesma idade. ABC Cafe/Red and Black: o recorte preciso. Em poucos minutos de música, usar o exemplo francês como resumo conciso das três correntes românticas no Brasil — a criação da identidade nacional idealizada; a paixão intensíssima do amor perfeito; a revolta contra as injustiças sociais. O embate entre o eu tão egocêntrico do indivíduo, no singular, e o nós tão coletivo do povo, no plural. O romântico chora: Red, I feel my soul on fire / Black, my world if she’s not there / Red, the color of desire / Black, the color of despair. Ao que o revolucionário responde, convocando o coro dos outros estudantes: Who cares about your lonely soul? / We strive towards a larger goal / Our little lives don’t count at all / Red, the blood of angry men / Black, the dark of ages past / Red, a world about to dawn / Black, the night that ends at last.
As mesmas cores, aos olhos de cada um, têm significados diferentes. Para o apaixonado, vermelho é desejo; para o revoltado, é sangue.
VI
Cena da faculdade: uma palestra sobre Glauber Rocha e os gregos. A voz do professor, tradutor e gênio Jacyntho Lins Brandão como a voz de um oráculo, me ensinando a ler Glauber como lemos Antígona. Uma tragédia evidenciada. O oráculo de tudo sabe. As personagens que vão para os lugares sem levar nada a não ser nosso próprio destino. (Que puta frase.) Está tudo ali na Terra do Sol: a forma das tragédias gregas, mas com a força do Sertão — que, decolonial, subverte a tradição da referência europeia. A entrega devocional a Deus e depois ao Diabo. Para Manuel, homem do povo, Eles são iguais. Autoritários e violentos e revolucionários… Ambos conhecem as dores desse povo esquecido pelos governos que por isso lhe falam ao coração. Impossível não lembrar da canetada de Hilda Hilst, aqui servindo de epígrafe: sei tudo sobre crueldade. conheço Deus.
VII
Que queres tu?, pergunta Deus ao Diabo no fim do conto “A Igreja do Diabo” (1883), de Machado de Assis. É a eterna contradição humana.
rastros de navegação
trabalhos pelos sete mares
A Isadora Attab escreveu na sua newsletter que o mantra “literatura primeiro” lhe deixou com ganas nesse mês de fevereiro. Obrigada, Isadora! Vamos espalhar a palavra.
carta na garrafa
respostas de leitores às últimas cartas
Ando numa fase super oswaldiana e consequentemente amando seus textos, o podcasts e essa cartinha! "Que filho da puta gostoso!"
— Micaela Redondo, 27.II.2025
Quem conhece o oceano não se contenta com a profundidade ilusória da piscina.
Vem nadar comigo!
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