"culpa o sol" na granta ☀️
Carta #29 || conto meu na revista granta; ventos mensageiros; aprender a voar errando
Quando as asas batem, os ventos passam a existir como mensageiros.
Kaká Werá, A terra dos mil povos
Bloomington, 8 de abril de 2025.
I
no tempo em que o tempo ainda não existia, as mulheres não tinham memória.
A Terra vivia grávida, o Céu dançava livre, o Rio serpenteava em fúria. Os bichos andavam às vezes vestidos de gente, às vezes só de bicho mesmo. O Sol já era Sol, já tinha a potência de incendiar tudo, inclusive nossas peles, y quanto mais queimava mais as mulheres se esqueciam.
Uma noite começou a chover y não parou mais. O Sol se escondeu y o mundo se inundou de água. Ali, pela primeira vez, inebriadas de tanta sombra, as mulheres criaram consciência do seu esquecimento. A tempestade, devastadora para os homens — esses sim, lembrados de tudo —, era para elas um respiro da tortura solar. Finalmente se deram conta do quanto de vida estavam perdendo, das maldades que os homens faziam com elas enquanto estavam desmemoriadas. Se reuniram para agir, rápido, antes que o Sol voltasse.
juntas, inventaram a primeira ferramenta da humanidade: uma bolsa.
O artefato era simples, feito de palha, oco por dentro y com uma alça, possibilitando que fosse levado sempre consigo. Ali dentro cabiam suas memórias, catalogadas cuidadosamente em cascas de buriti: cada lembrança encontrava sua casa numa casquinha. Quando o Sol voltou, a vida já era outra: a bolsa mudou tudo.
II
Esse é o início do conto “Culpa o sol”, que escrevi para a edição 12 da Revista Granta em Língua Portuguesa, uma das publicações mais prestigiosas do meio literário. O convite tão generoso veio do escritor brilhante Gustavo Pacheco, que além de criar obras primas como Alguns humanos (2018) — livro de contos que ganhou o Prêmio Lygia Fagundes Telles no navegantes book award™ —, é um leitor rigoroso que me honrou com esse belo texto sobre O presidente pornô, “Aquarela do Plazil”. Nessa edição da Granta, cujo tema foi QUENTE, “Culpa o sol” divide as páginas com as penas feiticeiras de Alejandro Zambra, Natália Borges Polesso e muito mais. Se você ler a Revista, me conta o que achou aqui nos comentários.
III
Enquanto escrevo o rascunho pra essa carta, o vento de Bloomington serpenteia em fúria e insiste em ser notado: bate fortíssimo na minha janela, fazendo as cortinas dançarem, inquietas. A previsão do tempo diz que há a possibilidade de tornado, uma ideia tão estrangeira pra quem só conhece tornados pelos livros de geografia. Certamente uma tempestade virá. A natureza se comunica conosco há milênios. Afinal, somos parte dela — mas muitas vezes agimos como filhos desnaturados, analfabetos da própria língua materna. Ignorantes, menosprezando nossa herança e agindo como quem não tem nada com isso.
Lá fora, o vento grita.
O Vento e o Sol apostaram num canto
Quem tiraria do andarilho o manto.
Soprou o Vento — o manto se agarrou;
Brilhou o Sol — o manto se afastou.
Venceu o Sol, mais cedo do que tarde:
A verdadeira força não faz alarde.
(Walter Crane, tradução BKO)
IV
Para escrever “Culpa o sol”, tive que recorrer muitas vezes à materialidade do texto, por ser uma história muito atenta à fisicalidade das coisas: o corpo sol, a lua, o vento, a terra, a água dos rios, a água do mar. Então comecei um caderno.
Quis intercalar páginas de colagens visuais e páginas de palavras — gesto que lembra o poderoso poema da minha conterrânea Ana Martins Marques, “Papel de seda”:
Houve um tempo em que se usava
nos livros
papel de seda para separar
as palavras e as imagens
receavam talvez que as palavras
pudessem ser tomadas pelos desenhos
que eram
receavam talvez que os desenhos
pudessem ser entendidos como as palavras
que eram
receavam a comunhão universal
dos traços
receavam que as palavras e as imagens
não fossem vistas como rivais
que são
mas como iguais
que são
receavam o atrito entre texto
e ilustração
receavam que lêssemos tudo
os sulcos no papel e as pregas das saias
das mocinhas retratadas
as linhas da paisagem e o contorno das casas
eu receava rasgar o papel de seda
erótico como roupa íntima
V
Entre palavras & imagens, esse caderno virou uma bússola — guiando onde o texto queria ir. Ali, nesse espaço híbrido, livre dos olhos de leitores, casa segura para a experimentação do rascunho, cabe tudo: anotações históricas, fichamentos de pesquisas, ideias fragmentadas, frases incompletas, pontos de interrogação, possíveis caminhos a seguir, lista de influências de linguagem, trechos de outros autores, linha do tempo, recortes de obras, planejamento da estrutura, lista de personagens, e principalmente: erros.
Para escrever, é preciso errar muito, errar sempre, errar mais.
VI
Desde que a li, penso muito nessa frase do Kaká Werá que funciona como epígrafe desta carta. Os ventos como mensageiros me conectam a você, que me lê, provavelmente a um continente de distância. Pense nos ventos que existem entre nós. O que eles transmitem? Quando um pássaro bate as asas, que ondas sonoras ele emite pro mundo ao redor? Que palavras são escritas com os traços que seu voo deixa no céu?
A elegância alada do pássaro é ao mesmo tempo sua linguagem e a maneira que ele ocupa espaço.
VII
“Culpa o sol” é, também, um texto sobre aprender a voar. Voar é, também, aprender a navegar o vento.
ativando arrebatamentos
textos que têm me extasiado
A Bia Costa escreveu essa carta no Substack dela sobre a ansiedade da criação citando “pelo suor silencioso”. Obrigada, Bia!
carta na garrafa
respostas de leitores às últimas cartas
Mto especial essa newsletter, Bruna. Eu estou passando justamente por isso. Obrigada
— Cláudia Campolina, aka presidenta do Mundo Invertido, se você ainda não conhece o incrível trabalho da Clau, corre lá no instagram dela, 25.03.2025
Bruna, no que acabo de ler de você, a frase sua que se aninhou em meu coração é "É preciso acolher a lentidão." Não só na escrita, mas em todos os gestos, nas poucas prioridades. Deixemos para os ladrões a urgência.
— Antônio Sérgio Bueno, 25.03.2025
Quem conhece o oceano não se contenta com a profundidade ilusória da piscina.
Vem nadar comigo!
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com amor, Bruna K
p.s.I. leia as outras cartinhas aqui.
p.s.II. compre O presidente pornô autografado aqui.
saindo daqui direto pra revista ler o conto!
Maravilhoso isso de o primeiro artefato ser a bolsa e o conto abrir com o mito de origem da bolsa. Curioso pra ler onde isso vai dar.