a mulher de quase 30 anos
Carta #23 || começar um novo ano rumo ao futuro, lembrar do passado
Antes de começarmos, sinto que preciso justificar a demora dessa carta. Primeiro, estive de férias em Porto Rico (quero e vou escrever sobre a experiência em cartas futuras, um beijo pro Bad Bunny), e quando voltei pra casa, fiquei bastante doente. Meu corpo deu um pane absurdo que pode ser explicado pelo choque de temperatura (de 30 graus para -20) mas também pelo cansaço acumulado de tanto trabalho. Então passei as últimas semanas recolhida, contemplando o triste inverno em silêncio, para me recuperar. Enfim voltamos à programação normal, e semana que vem envio a carta exclusiva para apoiadores.
A mulher de trinta anos satisfaz tudo, e a jovem, sob pena de deixar de sê-lo, nada deve satisfazer.
Honoré de Balzac (trad. Rosa Freire d’Aguiar)
Bloomington, 29 de janeiro de 2025.
I
Dois dos maiores contos eróticos brasileiros se iniciam de maneiras quase idênticas. “Nunca pude entender a conversação que tive com uma senhora, há muitos anos, contava eu dezessete, ela trinta.” & “Eu tinha dezoito anos, ela vinte e nove, bordadeira, e vinha todas as quintas-feiras refazer os bordados das roupas de cama de mamãe”. Me refiro a “Missa do galo” (1894), de Machado de Assis; e “Novos antropofágicos VI” (1991), de Hilda Hilst. Separados por um século, eles se parecem por um fato curioso comum: narradores homens rememoram uma iniciação erótica da adolescência com uma mulher madura. Hollywood está na onda de retratar mulheres mais velhas com homens mais novos. O que fascina tanto nessa ideia?
II
No tempo de Machado de Assis, o erotismo da mulher mais velha — casada ou viúva — residia no fato de toda a sociedade saber e aceitar que ela não é mais virgem. A experiência deslumbra, sobretudo aos olhos dos mais jovens. Há também uma interessante inversão na hierarquia de gênero: num mundo patriarcal, os homens mandam, as mulheres obedecem. Quando a balança da experiência entra no jogo, contudo, a cena momentaneamente se inverte, e quem têm o poder são elas — eles passam a ser presas inocentes, ignorantes, prontas para serem devoradas.
III
No século XIX, uma mulher de trinta anos já era vista como uma senhora. Hoje, a terceira década da vida é só o começo: a infância da adultidade. Quando ficamos confortáveis na própria pele. As dúvidas pueris dos vinte anos já foram, e surgem outras, mais complexas — mas você agora também têm mais complexidade: seu arsenal de ferramentas para lidar com o peso da existência aumentou. [Ou pelo menos é o que dizem: estou prestes a descobrir.]

IV
No excelente romance-diário Caderno proibido (1952, trad. Joana Angélica d’Ávila Melo), da italiana Alba de Céspedes, a protagonista Valéria escreve com receio sobre o futuro da sua prole, um homem e uma mulher jovens. Mas, no fundo, se preocupa mais com o filho.
Tenho pena dele porque é homem. Ninguém nunca espera nada de uma moça de vinte anos, ao passo que um homem, na mesma idade, já deve começar a medir forças com a vida.
Ela, porém, se contradiz, pois espera sim algo de sua filha de vinte anos: a submissão aos valores tradicionais, a escolha por uma vida igual à sua, pautada pela opressão do casamento cisheterossexual e pela devoção sacrificial à família. Contudo, após começar a escrever o diário, Valéria se questiona pela primeira vez em seus quarenta e três anos. O poder libidinoso das palavras a faz se perguntar se de fato tomou aquelas decisões por resolução própria ou se foi levada pela pressão das instituições sociais. Testemunhar a luta de sua filha Mirella pela liberdade — sexual, afetiva, profissional e sobretudo intelectual — confunde a sua cabeça de um jeito maravilhoso e vemos aos poucos essa mulher se permitir pequenas transgressões. E tudo começa pelo gesto proibido da escrita.
V
Ninguém nunca espera nada de uma moça de vinte anos. E o que se espera de uma mulher de trinta anos?
VI
Tenho pensado nisso tudo porque em 2025, este ano que chegou, completarei trinta anos de idade. E também porque, como um presente inesperado para abrir a última primavera dos vinte e nove, recebi a inusitada notícia de estar na lista da Forbes Under 30, na categoria música e literatura. Dizer que fiquei surpresa é pouco (quando pensamos em listas da Forbes, pensamos em dinheiro, não em escritores — entidades quase sempre diametralmente opostas), mas depois que o espanto inicial passou, me permiti sentir orgulho e alegria. Um reconhecimento como esse me faz olhar com carinho todo o suor do trabalho do passado, como escrevi mais detalhadamente no instagram; e ao mesmo tempo dá um gás para seguir construindo o futuro. Afinal, acabamos de começar — e a estrada é longa.
VII
Na adolescência, era obcecada pela Lira dos vinte anos (1853), de Álvares de Azevedo (já falei dele na newsletter, nessa carta). A complexidade da obra está, entre outras coisas, na ambiguidade dessa idade. Ora os vinte anos são doirados sonhos de futuro ilimitado nos olhos do poeta, ora são o sofrimento irremediável da passagem brutal do tempo:
Vinte anos! derramei-os gota a gota
Num abismo de dor e esquecimento...
De fogosas visões nutri meu peito...
Vinte anos!... sem viver um só momento!
Esse exagero retórico é delicioso. Amo as exclamações… e as reticências misteriosas também!
Hoje, nos últimos suspiros dos meus vinte anos, continuo me identificando um pouco com esse derramamento, afinal escrever é nutrir o peito de fogosas visões, e se confinar à escrita pode ser ficar sem viver um só momento. A vida, porém, é isto: escrever. E escrever é isto: viver.
rastros da navegação
trabalhos pelos sete mares
O escritor brasileiro-estadunidense Harold Rogers gostou tanto da última edição, “navegantes book award™”, que canibalizou a ideia e criou sua própria premiação. Com muita generosidade, além de várias excelentes indicações, ele recomendou O presidente pornô.
O presidente pornô também esteve nos melhores do ano da Camille Borges e do David Martinez, o que muito me honra!
carta na garrafa
respostas de leitores às últimas cartas
Que deleite o nome dos prêmios e suas respectivas menções honrosas! E que deliciosa lista, pesquei a metade pra experimentar, com aquele gostinho agridoce na boca : ) Preciso dizer: amei tanto a última news sobre a ex-poeta que guardei pra reler mais uma vez. Bateu tão fundo, resignificou tanto o meu ranço de um dia, ter sido uma poeta malditamente romântica aos 17. Foi bonito olhar para essa escola de linguagem que foi ser obcecada por Baudelaire, Ana. C, Álvarez de Azevedo, Camões, Drummond. Grata por este abraço tão generoso e simbólico.
— Paula Assis, 01.01.2025
Quem conhece o oceano não se contenta com a profundidade ilusória da piscina.
Vem nadar comigo!
Se gostou, me conta; se não, também. É só responder o email. ❤️
com amor, Bruna K
p.s.I. leia as outras cartinhas aqui.
p.s.II. compre O presidente pornô autografado aqui.
Parabéns Bruna! Pela marca dos 30 e Pelas conquista até aqui 🥳
A relação de Mirella e Valéria entrou na minha cabeça quando li o romance. Não se espera nada de uma moça de 20 anos, espera-se tudo de uma mulher-esposa-mãe de 40. O quanto dessas expectativas e não expectativas dos séculos passados carregamos nós, mulheres de quase 30 do século XXI? Excelente cartinha na garrafa, obrigada por nos brindar com suas escritas e reflexões 🩷