a odisseia do fragmento
Carta #15 || o estilhaço como método de escrita, a delícia da rotina
Cada mergulho é um flash.
— bordão de Odete em O Clone (2002)
Bloomington, 17 de setembro de 2024.
I
Se a gente olha tudo de um jeito vagaroso, tudo é sagrado, escreveu Hilda Hilst. No meio dessa sacralidade do cotidiano, me vêm algumas frases. Ideias não. Frases. Cortes, quebras, pedaços pontiagudos. Aceito o mistério. Pesco os textos no ar & lhes dou uma casa permanente de tinta. Depois volto à tarefa que estava me ocupando. Assim vivo. Assim penso. E assim escrevo. De fragmento em fragmento, uma dança desconexa, afiada, com eventuais grandes linhas que costuram os retalhos esparsos — essa dispersa e irregular família. As cartas — como essa que agora lês — são também fragmentos de uma longa conversa. Não são?
II
O tesão exponencial em fazer algo pela primeira vez. A possibilidade infinita da promessa. A delícia do desconhecido. O futuro aberto, te chamando — vem.
III
Dias Perfeitos, do Win Wenders: um homem acorda, rega seus bonsais, apara o bigode, coloca nos bolsos a sequência de itens que usa diariamente, e sai para enfrentar o mundo — não sem antes respirar profundamente o ar do universo, admirando o dia que começa. O seu trabalho é limpar banheiros de uma das maiores metrópoles do planeta. Com minúcia, delicadeza & atenção, ele retira a sujeira de onde ela, inevitavelmente, retornará. O seu trabalho é, portanto, um presente para o próximo, seu compatriota desconhecido: o prazer de se aliviar em um banheiro limpo. Assim, não há solidão — ele está em constante e silencioso contato com outros japoneses ao seu redor. Este homem já teve uma vida cheia de luxos, passado vislumbrado pela rápida aparição de sua irmã rica, mas hoje ele quer viver com menos. Leve. Buscando a delícia de ouvir música em fitas cassete, ler livros, admirar o sol tocando as árvores e sair pra passear de bicicleta.
IV
O desafio de criar uma sequência habitual de atividades. A cada dia mais ou menos igual ao anterior, viver pela primeira vez uma nova experiência: a de cultivar cada vez mais constância numa rotina pensada para ser ao mesmo tempo funcional e deliciosa. Só assim ela permanece. Sem o gozo, nada feito.
V
Um dia perfeito de solidão: acordar cedo sem o despertador, ferver água, rápida yoga pra despertar o corpo enquanto as ervas soltam seu perfume na xícara, tomar chá um combustível, comer algo gostoso um combustível, nadar sem pensar em nada além do ritmo das braçadas um combustível, limpar o corpo num banho ritual, compreender que a água é mãe & casa, hidratar a pele, os cabelos, as unhas, escrever. Escrever sem olhar o relógio. Até a mão doer ou o estômago roncar. Comer o almoço pronto na geladeira, pois nos dias perfeitos há planejamento, lavar a louça, arrumar a cozinha, tudo isso ouvindo música rebolando. Sair pra caminhar à toa, se deixar surpreender pela cidade, pelos outros. Deitar na grama de um parque & sentir o sol beijando a pele. Ler de pernas pro ar. Ler sem lembrar do relógio. Comer uma fruta caudalosa, sujar-se, inundar a boca. Ver um filme no cinema. Jantar num restaurante onde mãos inteligentíssimas preparam obras de arte comestíveis. Voltar caminhando pra casa curtindo a brisa de verão noturna, pois nos dias perfeitos é sempre verão. Tirar a roupa do dia, acender um incenso & otras cositas mais, fazer amor feroz consigo. Registrar os pormenores das horas no Diário. Entregar-se ao mundo dos sonhos. Perfeito êxtase da satisfação simples.
Como é seu dia perfeito de solidão?
VI
Não é assim, entre fragmentos, que vivemos? Nenhuma tarefa acaba. Nunca. Ela continua como estilhaço entre a narratividade dos dias. Lavar louça, lavar roupa, limpar casa, cozinhar, estudar, trabalhar, resolver burocracias, cuidar de si, transar. Nada disso termina. E toda vez que fazemos algo dessa lista é somente uma parcela do todo, uma migalha uma partícula, fadada a ser eternamente incompleta, dentro do grande concerto da odisseia cotidiana.
VII
Encontrar prazer na funcionalidade das coisas. Eis aí o verdadeiro jogo.
ativando arrebatamentos
textos que têm me extasiado
Pra ler fazendo anotações nas margens: não vão nos matar agora, Jota Mombaça. Livro híbrido entre o ensaio e a performance, condensa em palavras várias coisas que sentimos nesse fim do mundo que nunca acaba.
Pra dançar no banho de luz apagada: De volta pra gaiola: amor de verdade, Valesca Popozuda. Obra prima da libido brasileira. Tão bom ouvir as coisas com o nome que elas têm: rola, xota, cu.
Pra ouvir no transporte (e treinar o inglês): a série de três episódios The Kinsey Report, do Conflicted: A History Podcast. Vida e obra do gênio Alfred Kinsey, um dos maiores pesquisadores sobre sexualidade que já existiu, e que foi professor da Indiana University, onde curso meu Ph.D. Estou trabalhando no Kinsey Institute esse semestre e não me canso da história fascinante do biólogo que passou 20 anos coletando mais de 5 milhões de vespas, pra depois penetrar a intimidade dos estadunidenses e lançar dois livros incendiários sobre o comportamento sexual humano.
Pra ver se segurando no sofá: a segunda temporada genial de Os Outros, escrita por Lucas Paraizo e dirigida por Luísa Lima e Lara Carmo. Acho que superou a primeira, tarefa muito difícil. Uma masterclass refinada de narrativa e de Brasil.
rastros de navegação
trabalhos pelos sete mares
Fiz uma participação especial no episódio “crítica, cricrítica e chorume” desse que se tornou meu programa de áudio preferido: Estratégias Narrativas Podcast, da perfeita Laura Cohen. Escute aqui!
Na edição de agosto da revista Quatrocincoum, a jornalista Anna Virginia Balloussier escreveu a reportagem “Sexo no feminino”, sobre escritoras de literatura erótica — entre elas, a humilde autora de O presidente pornô.
Conversei com o jornalista Raphael Vidigal pra falar de censura e literatura brasileira nos Estados Unidos, nessa ótima reportagem que saiu no jornal O Tempo.
Dei uma entrevista deliciosa ao amigo Rafael Silva, professor da UECE, na qual falamos de literatura contemporânea, tensões coloniais entre Brasil e Portugal, e muito mais. Veja aqui!
carta na garrafa
respostas de leitores às últimas cartas
Me vi demais no seu texto e em como o descobrimento de Hilda é mesmo esse descobrimento de Jesus - analogia incrível, inclusive. Fiquei tentando lembrar, em vão, quando também aconteceu comigo. Não vejo a hora da biografia sair! E certamente te lerei poeta e romancista antes disso! 🫶
— Bruna Werneck, 06.09.24
me sinto prontíssima pra estar na cama com Hilda e BKO juntas <3
— Nina Rocha, 10.09.24 (aliás, se inscrevam na excelente news dela, genialmente intitulada Nina Nina Não)
Quem conhece o oceano não se contenta com a profundidade ilusória da piscina.
Vem nadar comigo!
Se gostou, me conta; se não, também. É só responder o email. ❤️
com amor, Bruna K
Esse seu texto me animou. Eu tinha deletado meu Substack, mas ter visto sua chamada no Insta pra cá me trouxe de volta. Acho que vi no stories da Laura Cohen. Me deu vontade de te falar uma prática meio wtf, mas que muito me diverte. Escrevo diário no laptop. Sinto que não conseguiria decifrar a minha caligrafia se passasse um tempo longo após a minha escrita. De todo modo, esses diários tem o título carinhoso de Vomitodromo. A prática consiste em passado determinado tempo [6 meses, 1 ano], voltar lendo o que se escreveu, dessa vez pinçando fragmentos de sustos, absurdos, e coisas semi-poéticas. Em janeiro eu publiquei esses fragmentos com o título de Cancelamento de ruído, muito pelos fones novos com essa tecnologia anti barulho, que ajuda, mas aliena ao mesmo tempo. Esse sábado agora [21/9] lanço o segundo volume desse mini-projeto fragmentário. Eu quis vir aqui te contar isso, porque é um estranhamento ver esses fragmentos dialogando uns com os outros como uma forma de aproximações induzidas. Claro, fazer esse levante em um arquivo de 100 páginas, talvez o mais interessante fique de fora, mas são os mais bobos os melhores.
Eu tive um pico de mania depois de ver Dias perfeitos em casa. Não consegui ver no cinema. Mas assim, enlouqueci. Fiquei de rever, mas por enquanto não posso tamanha vertigem. Enfim, obrigado por falar desse amorzinho por fragmentos, sempre construindo em cima de ruínas ruidosas que se levantam, ah como levantam.
parabéns, bruna, embora tenha sido um pouco gatilho ler tantos prazeres cotidianos no exato momento em que brigo com uma burocracia bancária e acadêmica. riquíssima, muitas referências para explorar. e uma imagem: a de liam neeson como kinsey, antes de se acomodar no mesmo e repetitivo papel de macho vingador.