roçar a língua na metrópole
Carta #33 || viajando na pátria; a experiência paulistana; perigos & promessas
Num mictório de São Paulo
Pouco depois li uma vez,
Sobre o desenho dum pênis,
Rei dos reis.
Mário de Andrade, “Lira Paulistana”
São Paulo, 25 de maio de 2025 — Rio de Janeiro, 06 de junho de 2025.
I
Complexa operação essa de transitar na cidade mais populosa da América. É preciso desviar dos buracos nas ruas, dos barulhos incessantes e sobretudo dos pés alheios — ó, quantos Outros formam esta bela ideia chamada Povo! Eles — Nós — Os Outros: uma sopa de organismos cozinhando lentamente; cada um de nós um tentáculo do grande Polvo; um figurante no espetáculo da metrópole; cenário; massa. Ó, como é bom sentir-se parte de uma amálgama coesa & caótica em si mesma, nem rastro dos vazios estadunidenses, aquelas highways imensas cheias de máquinas e nada de gente... Aqui, não. Olhar pro lado: enxergar-se; ouvir a própria língua na boca alheia: escutar-se. Ninguém te vê: liberdade. Ninguém te nota: isolamento. Ninguém se dá conta: comunhão. São Paulo.
II
Aprecio quando as estruturas urbanas se aproveitam de seus espaços vazios — telas em branco desejando serem ocupadas — para dar aos transeuntes leves pitadas culturais. Acho linda a ideia de espalhar obras de arte trechos literários música, em típicos ambientes de passagem, o entre-lugar por excelência. Assim, a arte dá um breve respiro ao cotidiano massacrante da massa, um momentinho que seja pra se distrair da desgraça do transporte público, um sonho, um devaneio efêmero, suspiros da libido. Saúde. Inspiração, expiração. No metrô, vozes de escritores: de Haroldo de Campos a Sá de Miranda (que imediatamente me lembra de Maria Teresa Horta, “comigo me desavim / minha senhora / de mim” — aquela história de Kafka e seus precursores, conhecer o passado por meio do futuro). Versos quase invisíveis na parede da correria: quase ninguém os vê, mas quem vê, lê. E quem lê, respira.
III
Um exercício. A ideia surge no elevador. Reescrever o Carlos Drummond de Andrade de “Explicação”. Convocar Minas Gerais para examinar São Paulo. Ver se funciona mais com menos. Usar o corte pra dizer o que quero, sem dizer nada. Extrair do clássico o fresco; do velho, o novo. Escrever sem escrever.
IV
Meu texto é minha consolação. Meu texto é minha cachaça. Todo mundo tem sua cachaça. Para louvar a Deus como para aliviar o peito, queixar o desprezo da morena, cantar minha vida e trabalhos é que faço meu texto. E meu texto me agrada. Meu texto me agrada sempre… Ele às vezes tem o ar sem-vergonha de quem vai dar uma cambalhota. Mas não é para o público, é para mim mesmo essa cambalhota. Eu bem me entendo. Não sou alegre. Sou até muito triste. A culpa é da sombra das bananeiras de meu país. Há dias em que ando na rua de olhos baixos para que ninguém desconfie, ninguém perceba… que passei a noite inteira chorando. E a gente viajando na pátria sente saudades da pátria. Aquela casa de nove andares comerciais é muito interessante. A casa colonial da fazenda também era… No elevador penso na roça, na roça penso no elevador. Quem me fez assim foi minha gente e minha terra e eu gosto bem
de ter nascido com essa tara.
V
Belos passeios pelos museus da capital. Roçar a linguagem brasileira; esquecer Camões; beijar Mano Brown. De língua! Celebrar os sotaques desdobráveis que nos lambem, lambilongos, lambilentos. Ler com os ouvidos, escutar com os olhos. Antes de ir embora do estado de São Paulo, passo na Casa do Sol, em Campinas. Olga Bilenky me recebe e juntas lemos uma estante de tijolos. Nada mais Hilda Hilst que isso, penso. Ler sem palavras, pensar sem linguagem.
VI
Morando em uma cidadezinha estadunidense com oitenta mil habitantes, exilada da minha terra, longe dos meus afetos, é natural que voltar pra casa seja um imenso desbunde. Dizer sim pra quem amo e renovar a presença com esse mundo de gente querida. Na metrópole, encontro amizades do coração, rimos, choramos, compartilhamos refeições e segredos. Escrever pode ser às vezes um ofício solitário. Mas na maior parte do tempo, escrever é isto: conversar, escutar, amar.
VII
Enquanto rabisco esta última entrada, sobrevoo São Paulo em direção ao Rio de Janeiro. Penso nos assuntos inacabados deixados pra trás na capital paulista. Portas entreabertas. Perigos, possibilidades, promessas. Penso nos tantos textos que já nasceram voando: como uma personagem de Elvira Vigna, tão afeita aos espaços ambíguos de passagem, a criatividade do entre-lugar me infecta. Escrevo absurdos impublicáveis. Penso no futuro. A viagem continua.
carta na garrafa
respostas de leitores às últimas cartas
Ei, Bruna, seus comentários sempre surpreendentes me encantam: o tumulto paradoxal dos desejos (se a gente está onde está nosso desejo, estamos todos tontos na pista) o brasileiro-bambu e seu humor irreverente, as duas óperas de BH, que não pude ver por estar doente. Digamos juntos enquanto eu estiver vivo. Beijos muitos pra você.
— a última mensagem que Antônio Sergio Bueno me enviou, em 20.05.2025, antes de ele nos deixar, no dia 31. O Estado de Minas e a UFMG, nossa alma mater comum, lembraram sua brilhante carreira e lhe prestaram homenagens. A ele, que era leitor e comentador desta Carta para navegantes, dedico esta edição, muito emocionada. Você, Serginho, sempre estará vivo conosco. Obrigada por tanto!
Quem conhece o oceano não se contenta com a profundidade ilusória da piscina.
Vem nadar comigo!
Se gostou, me conta; se não, também. É só responder o email. ❤️
com amor, Bruna K
p.s.I. leia as outras cartinhas aqui.
p.s.II. compre O presidente pornô autografado aqui.
"a criatividade do entre-lugar me infecta", ai como me senti contemplado!! Sou da RMBH né, então o ônibus sempre foi o lugar especial das leituras, desde cedo. Na faculdade, já em BH, foi no metrô que eu li graaande parte dos textos acadêmicos. só pegar um transporte público que eu voo pra dentro de mim. Hoje adoro escrever no busão, e com caderno e caneta, pra deslocar o olhar do público, bem cenicamente mesmo! Pra ninguém esquecer que ainda se escreve nesse mundo.
Amei ❤️