em busca da intelectual-cavala 🐎
Carta #30 || corpo é intelecto; animalidade é humanidade; exercício físico é exercício mental
Antes de começarmos, queria compartilhar que esta Carta para navegantes chegou a uma tripulação de mais de 1000 leitores! Muito obrigada pela leitura atenta, carinhosa, gentil. Que esta embarcação cresça sempre, para cruzarmos juntos mares nunca dantes navegados. Que tal convidar mais marinheiros pra essa aventura?
prefiro ser égua
a ser deusa
Gal Freire, “Galope”
Bloomington, 21 de abril de 2025.
I
Como toda pessoa que sofreu com a socialização feminina, por muito tempo acreditei na falsa dicotomia entre corpo & intelecto, objeto & sujeito. Ser gostosa ou ser inteligente, eis a questão. Almejar os dois era uma utopia impossível, pois dentro da lógica patriarcal um impede o outro: ou o valor feminino está no corpo, objeto sexual para os predadores masculinos (bela, desejável, promíscua); ou está na sua capacidade de pensar, consequentemente desprovida de qualquer sensualidade (feia, recatada, frígida).
No meu caso, o despertar intelectual veio muito antes do despertar corporal, e, numa espécie de “feminismo” distorcido que recusava a qualquer custo a objetificação sexual, minha inclinação logo tornou-se nítida: entre a gostosura e a inteligência, fico com a inteligência. Os problemas dessa falsa decisão são muitos. Primeiro, nada disso é escolhido, e sim imposto, já que o controle do corpo feminino é base do patriarcado. Segundo, focar no intelecto pouco importa se seu corpo segue existindo como alvo de violência sexual. Sobretudo, a crueldade desse binarismo nos afasta da nossa materialidade física, e, paradoxalmente, nos aprisiona como objetos enquanto a fantasia feminista era emancipar-nos como sujeitas. Quando investimos toda a energia erótica na mente, não sobra nada para a libido do corpo, agora inerte, distante, esquecido — logo, em vez de impor-nos como sujeitos ativos, nos confinamos a ser objetos passivos.
Bibelôs ignorantes acerca dos próprios desejos e potencialidades eróticas. Conhecendo o cânone, desconhecendo a nós mesmas.
O ronco da moto atravessa varado feito bicho do mato
ferido.
Acuada, fecho o cenho e
o punho firme,
vou de encontro ao corpo que me aponta o calibre.— Valeska Torres, “O coice da égua”
II
O Abaporu (1928), quadro mais famoso da arte visual brasileira, brinca com a oposição tensionada entre corpo & intelecto. Numa imagem que convoca as cores da bandeira nacional para criar uma representação do arquétipo do brasileiro, Tarsila do Amaral apresenta um corpo disforme cujos membros são enormes e a cabeça é pequenina. Na pose d’O pensador, de Rodin, o Abaporu rumina, mas seu cérebro tão minúsculo perde os holofotes para sua bunda, sua perna, e sobretudo seu pé. Você não pode pensar em português, já dizia Hilda Hilst, aniversariante do dia. É bom pensar em inglês, em alemão, as pessoas aceitam. Em português, você pensar é uma coisa horrível, os editores odeiam, te cospem na cara. Como produzir pensamento enquanto brasileiros se a nossa identidade é vista pelo mundo todo como a de um povo que não pensa, confinado nas curvas perigosas e sensuais do corpo tropical?

III
Quando eu era criança em Belo Horizonte, chamava-se cavalona a menina forte que se destacava nos exercícios físicos. Na natação e no handebol, os dois esportes que mais pratiquei na infância e adolescência, era sempre eu, baixa e pequena, contra as cavalonas, altas e grandes. Garotas musculosas, robustas, imponentes, que furavam a água com destreza e cruzavam a quadra com facilidade. Todas tínhamos a mesma idade, mas formações corporais diferentes. A pequena Bruna, que até se virava bem nos esportes, sabia que jamais conseguiria derrotá-las. Tinha medo daquele poder. E ao mesmo tempo sentia uma profunda admiração por elas, seres híbridos que desafiavam as convenções de gênero. O melhor do masculino & o melhor do feminino. As cavalonas, plenas em sua liberdade de éguas indomáveis, podiam conquistar o mundo, como conquistavam um pódio atrás do outro.

saber o coice antes do coice dói mais.
é bom.
o tapa vem de baixo.
pasto aberto não corro.
relincho
espero a água.
— Natasha Felix, “Use o alicate agora”
IV
Em “Os ensaios” (1580), Michel de Montaigne transforma a pena num pincel e pinta um retrato de si. Para Silvio Lima, em “Ensaio sobre a essência do ensaio” (1944), cujas citações estão em itálico, Montaigne mais fala que escreve, é um escrever onde se impregnam o calor, o sopro, a cor e o timbre de uma voz. Lima vê esse estilo ensaístico como um diálogo do eu com o corpo, sempre a partir do orgânico como centro do pensamento, de maneira que a matéria física precisa ter experiências para poder pensar e refletir. Frase motivacional do instagram: cansar o corpo para descansar a mente. Os ensaios são a marcha evolutiva e intérmina de um pensamento que acorda, se desentorpece, estende as pernas e os braços e se projeta para a frente, para o espaço vazio, num arranco de autonomia. Na Grécia, nasceu ao mesmo tempo a razão e o esporte. Por meio do texto escrito, o eu liberta-se, e marcha, pensando e pensa, marchando. Para ser livre, o eu precisa querer ser livre. Tudo passa pelo desejo.
Na raiz de todo ensaio vibra um treino, uma ginástica. A crítica é a ginástica do intelecto. A crítica é o equivalente mental do exercício físico. Criticando, o intelecto robustece-se, ginastica-se pelo jogo das ideias. Criticar é esgrimir, como investigar é caçar. É que a razão e o esporte, longe de repugnarem um ao outro como dados contraditórios, são duas partes componentes e inseparáveis do mesmo todo humano: a alma e o corpo, o psíquico e o somático, Apolo e Dionísio. O pensar, o ajuizar, o raciocinar são, no fundo, uma luta, uma ginástica viva, uma palestra. Palestra vem de pale, luta corpo a corpo. Palestrar é lutar.
Penso no aspecto violento (e masculino…) que perpassa essas definições, o crítico como o caçador da Branca de Neve, perseguindo inocentes criaturas na escura e sinistra floresta das referências. De novo, o movimento, a oposição, o conflito: em uma luta, seja ela interna ou externa, alguém ganha e alguém perde, sempre. O dinamismo vital das ideias, a concepção do labor mental como luta palpitante, duelo vibrátil.
V
Na excelente série Physical (Apple TV, 2021-2023), a aeróbica surge como ferramenta de empoderamento, de matar as vozes predatórias da nossa cabeça, de vencer os distúrbios alimentares, de se sentir viva. Enfim: de conectar-se com o mais profundo erótico de nós mesmas, no melhor estilo Audre Lorde. Em Wanderlust: a history of walking (2001, tradução de Maria do Carmo Zanini como A história do caminhar), Rebecca Solnit apresenta a caminhada como atividade política e cultural, um estilo de vida filosófico. A imagem do flâneur desvendando a cidade moderna com os olhos (um beijo pro Baudelaire): caminhar é ler o mundo ao redor. Frase de Paul Klee: uma linha é um ponto que saiu para caminhar.
VI
Hoje Hilda Hilst faria 95 anos. Em uma de suas tantas canetadas relacionando humanidade e animalidade (um beijo pra minha professora querida Maria Esther Maciel), neste poema de Sobre a tua grande face (1986), ela nos presenteia com a eterna imagem da égua fantasmagórica. Aqui, a violência da cavala é sublimada em delicadeza absoluta, espiritualidade, conexão profunda com a natureza, a água, a lua. Uma égua que pensa, na fantasia de existir & ser, como todas nós:
De tanto te pensar, me veio a ilusão.
A mesma ilusão
Da égua que sorve a água pensando sorver a lua.
De te pensar me deito nas aguadas
E acredito luzir e estar atada
Ao fulgor do costado de um negro cavalo de cem luas.
De te sonhar, tenho nada,
Mas acredito em mim o ouro e o mundo.
De te amar, possuída de ossos e abismos
Acredito ter carne e vadiar
Ao redor dos teus cismos. De nunca te tocar
Tocando os outros
Acredito ter mãos, acredito ter boca
Quando só tenho patas e focinho.
De muito desejar altura e eternidade
Me vem a fantasia de que Existo e Sou.
Quando sou nada: égua fantasmagórica
Sorvendo a lua n’água.
VII
Gal Freire, dançarina, poeta do corpo e leitora de Hilda Hilst, recupera essa imagem tão complexa da égua fantasmagórica e brinca com ela quebrando a hegemonia cisgênera. Nos versos que servem de epígrafe a esta carta, o eu-lírico se alinha mais à selvageria da nossa carne animal do que ao sagrado imaterial do nosso espírito. Márcio Junqueira, poeta da imagem e leitor de Hilda Hilst, em suas performances no instagram cunha o termo “intelectual-cavala”.
Por causa de tudo isso, hoje não separo mais mente e matéria. Faço exercícios físicos cinco vezes por semana, me alongo e rebolo todos os dias. A cada treino na academia, na piscina ou no tapete de yoga, me torno uma escritora mais forte. É sério: depois que alinhei corpo+intelecto, penso melhor & mais profundo. Bruna Kalil Othero, leitora de Hilda Hilst, Gal Freire, Márcio Junqueira, Valeska Torres, Natasha Felix, Montaigne, Audre Lorde, Maria Esther Maciel, Rebecca Solnit, corre junto dessa manada.
Intelectuais-cavalas do mundo, relinchemos!
carta na garrafa
respostas de leitores às últimas cartas
Adoro suas cartas, Bruna! ❤️ Parabéns enorme pela granta!!! Você é maravilhosa!
— Ananda Lima, grande escritora brasileira radicada nos EUA, super recomendo o trabalho dela, 08.04.2025
Maravilhoso isso de o primeiro artefato ser a bolsa e o conto abrir com o mito de origem da bolsa. Curioso pra ler onde isso vai dar.
— Odorico Leal, e se você não assinou a newsletter dele ainda, corre lá que é a minha preferida da atualidade, 09.04.2025
Quem conhece o oceano não se contenta com a profundidade ilusória da piscina.
Vem nadar comigo!
Se gostou, me conta; se não, também. É só responder o email. ❤️
com amor, Bruna K
p.s.I. leia as outras cartinhas aqui.
p.s.II. compre O presidente pornô autografado aqui.
Muito bom! Lembrei daquele.ensaio famoso do Borges sobre os sonhos e os pesadelos em que ele resgata a etimologia de couchemar e nightmare conectando as palavras ao mito da égua da noite, que vem cavalgando no nosso peito nos trazendo sustos...
cavalas e literárias 🔥