a imensa insuportável funda nostalgia de ter amado o gozo, a terra, a carne do outro
— Hilda Hilst
Bloomington, 05 de setembro de 2024.
Querida pessoa que me lê,
Há alguns meses, veio a público, na Folha de São Paulo, uma notícia que estava encerrada na minha intimidade: estou trabalhando em uma biografia de Hilda Hilst para a Companhia das Letras. Desde que recebi o convite da editora para tocar tão ambicioso projeto, tenho pensado na centralidade dessa mulher na minha vida. Nessa carta, compartilho com vocês a trajetória que nos fez chegar até aqui.
O inescapável: grandes escritores se misturam à memória coletiva de um povo. Por isso, não sei exatamente quando foi a primeira vez que ouvi falar dessa tal Hilda Hilst — seu nome e sobretudo seus poemas orbitavam a minha cabeça de maneira distraída e natural. Da mesma forma que não lembramos o momento exato que descobrimos quem é Jesus, não sei quando descobri quem era HH. Você se lembra? Me conta:
Tudo isso mudou quando entrei na UFMG para cursar a graduação em Letras, em 2014. Desde as primeiras aulas, múltiplos deslumbramentos: então a literatura que eu já amo, pelo simples prazer de ler, ainda tem muitas e complexas facetas a serem exploradas? Meu deus, que bom estar viva e aprender tudo isso. Foi durante esse êxtase da alfabetização literária que HH entrou em cena, em disciplina da professora Lucia Castello Branco, que se tornou minha orientadora de iniciação científica e TCC.
Foi aí que resolvi ler a obra completa da bruxa de Jaú. Na época, era difícil encontrar seus livros, pois a editora Globo já não imprimia novos exemplares, então me desdobrava pra comprar os raros volumes encontrados em sebos no centro de BH ou na internet. Assim que achava, devorava: fui sedenta rumo a Fluxo-floema, Rútilos, A Obscena Senhora D, Do Desejo, Cantares, Kadosh, Exercícios, Tu não te moves de ti, Júbilo, memória, noviciado da paixão, além do teatro completo e das crônicas. Essas páginas foram me nutrindo, me dando forças, me abraçando; até que tive coragem de lançar meu primeiro livro, em novembro daquele ano de 2015.
Numa manhã de sábado, num lançamento na livraria Quixote, vi o Pornô Chic na vitrine e levei. Depois de algumas cervejas, peguei o 5106 (antigo 2004), correndo da Savassi de volta pra Pampulha: queria dividir a cama com Hilda Hilst. Cheguei em casa, tranquei a porta, acendi um incenso, deitei e abri aquele livro tão rosa & tão grosso. Lembro nitidamente. O assombro desde as primeiras frases incendiárias de O Caderno Rosa de Lori Lamby:
Eu tenho oito anos. Eu vou contar tudo do jeito que eu sei porque mamãe e papai me falaram para eu contar do jeito que eu sei. E depois eu falo do começo da história.
Foi impossível parar de ler. Virgem seduzida, me entreguei totalmente à prosa de Lori, com horror e encantamento. Meu corpo entrava em brasa: o absurdo de sentir ao mesmo tempo admiração, medo, & muito humor. Como era possível um texto assim? Lendo o último ponto final, fechei o livro rosa e encarei o teto. Ali se passaram milênios. No meio daquele transe, percebi que estava queimando em febre. 39 graus no termomêtro, alucinações, riso, choro.
Depois de Lori Lamby nunca mais fui a mesma.
Tomei então a única atitude possível: minha monografia de graduação seria sobre esse livro pedregoso, poderoso e polêmico. Enquanto trabalhava na pesquisa, ia preparando o lançamento do meu segundo livro, onde a presença de HH é óbvia e pulsante. No fim de 2017, um mês depois de lançar o Anticorpo, defendi o TCC “Têm língua e têm dedo”: o leitor violentado em O Caderno Rosa de Lori Lamby, de Hilda Hilst, mas sabia que aquele era só o começo. Logo entrei no mestrado na mesma UFMG, agora sob orientação da professora Maria Zilda Cury, para investigar a trilogia pornográfica como um todo, tentando entender melhor essa revolta como um projeto.
Em 2018, começo o mestrado já com a boa notícia de Hilda homenageada na FLIP. Por esse contexto de celebração, a Carol Magalhães, editora da Quintal Edições, casa voltada exclusivamente para a publicação de mulheres, me chamou pra organizar um livro de ensaios hilstianos a ser lançado em Paraty. Nasceu aí A Porca Revolucionária: ensaios literários sobre a obra de Hilda Hilst, uma reunião da voz de nove jovens pesquisadoras: Sílvia Michelle de Avelar (PUC-MG), Juliana Caldas (USP), Lisiane Andriolli Danieli (FURG), Domingas Alvim (UFMG), Luisa Destri (UNICAMP), Arethuza Iemini (UFMG), Laura Folgueira (USP), Bruna Kalil Othero (UFMG) e Dheyne de Souza (UFG).
Em 2019, com a bagagem de anos de investigações e uma FLIP, era chegada a hora de conhecer a Casa do Sol. Depois de pesquisar no arquivo de HH na UNICAMP, com a ajuda do arquivista Cristiano Diniz, fui para a famosa torre de Capim. Recebida por Olga Bilenky e os cachorros, passei adoráveis dias como residente da Casa, vivenciando o ambiente sagrado que Hilda levantou do chão para a criação artística. Esse templo espelha a sua criadora: é um lugar místico, sedutor, libidinoso, abençoado. Em apenas quatro dias, além das muitas leituras e pesquisas e conversas com Olga, ainda escrevi uma peça de teatro, que saiu de mim inteirinha, como se as palavras fossem feitiço. A Casa é tudo que Hilda sonhou — terra fértil pra arte nascer.
Em outubro de 2019, ainda no êxtase pós-Casa, lancei os livros Oswald pede a Tarsila que lave suas cuecas e Carne — esse último com epígrafes de Hilda (a mesma dessa carta) e de Becker. Em fevereiro de 2020, depois de dois anos de intensa dedicação, defendi a dissertação Além do ponto G, o ponto H: a pornocracia como projeto literário de Hilda Hilst, que pode ser lida clicando no link. Aí veio uma pandemia que mudou todos os nossos planos, e depois de uma reprovação no doutorado da USP, decidi tentar o Ph.D. nos Estados Unidos, o que acabou dando certo.
Antes de me mudar para Bloomington, em agosto de 2021, tinha uma missão pessoal: terminar o meu romance, pois sentia que ele precisava nascer inteiro no Brasil. Incentivada pela disciplina feroz de Hilda, madrinha desse projeto, ocupei-me de O presidente pornô por pelo menos uma hora todos os dias, e consegui finalizar sua primeira versão em terras brasileiras. Nos dois anos seguintes, eu e minha maravilhosa editora Camila Berto trabalhamos no romance, enquanto eu cursava as disciplinas do Ph.D. Em 2023, O presidente pornô veio a público, e aí voltamos ao início desse texto, quando veio o convite pra escrever a biografia.
Há dez anos portanto que me dedico a Hilda Hilst, sua obra & sua memória.
A biografia é minha chance de compartilhar a paixão por essa mulher-pergunta, e tentar criar mais hilstianes no processo. Sei o tamanho dessa responsabilidade, e encaro-a de frente, com a esperança de honrar o legado imenso da nossa santa que levantou a saia. Vamos nessa.
Em breve, uma nova cartinha
Depois de muito pensar e repensar e conversar com minha amiga maravilhosa Carol Dini (inclusive, se inscrevam na news dela!), estou reformulando a cartinha Carta para navegantes, numa tentativa de enviá-la com mais frequência, para firmarmos esse espaço tão precioso de comunicação.
Me conta que tipo de texto você gostaria de ver em próximas edições? Sua opinião vale ouro. <3
Carta na garrafa
Que delícia te ler e sair anotando várias referências pra ler logo mais.
—Paula Assis, 29.04.24
Incrível como a libido está em tantas outras coisas da vida além do sexo, né? Tenho pensado e discutido muito isso na análise: a necessidade de alimentar e reacender essa pulsão de vida que, tantas vezes, em decorrência do caos do mundo, adormece dentro da gente. Mas é justamente neste caos que é preciso aprender a dançar, fazer graça e deixar a emoção livre. Que a gente nunca se esqueça de nada disso!
— Carolina Schittini, 24.04.24
Quem conhece o oceano não se contenta com a profundidade ilusória da piscina.
Vem nadar comigo!
Se gostou, me conta; se não, também. É só responder o email. ❤️
com amor, Bruna K
p.s. leia as outras cartinhas aqui.
p.s. 2. agora eu tenho um site, depois vai lá ver que lindo que ficou.
me sinto prontíssima pra estar na cama com Hilda e BKO juntas <3
ai que delícia de história e de texto <3