O português ficou comovido de achar
Um mundo inesperado nas águas
E disse: Estados Unidos do Brasil
Oswald de Andrade
Bloomington, Estados Unidos, 24 de janeiro de 2021.
querida pessoa que me lê,
eu já não sou eu. você também não é mais você, haja vista a minha longa ausência desse canal de comunicação, dessa carta na garrafa, desse retorno ao gênero que mais me encanta na literatura, a epistolografia. tem tempo que só escrevo pra mim mesma. a comunicação tem me dado cada vez mais medo. falar é perigoso. ouvir também.
agora estou distante, far far far away, do outro lado da América, no coração do capitalismo. peguei meu cérebro e fugi pra fazer um PhD no Department of Spanish and Portuguese da Indiana University. e esse cérebro fugido tá aqui ralando, lendo coisa em inglês e espanhol, tendo aula em inglês, dando aula em espanhol, enquanto no fundo sente saudade de pensar & viver & escrever só em português.
a minha pátria é a língua portuguesa, escreveu o Pessoa.
esse poeminha do Oswald que eu uso como epígrafe é engraçado. anacronismo, ele se chama.
reli a Carta do Pero Vaz de Caminha, analisei, li o ensaio de um gringo falando dela, e dele, the voice of the luso-brazilian chronicle, the voice, já lembrei da Spivak, não, nunca o subalterno pode falar, é estranho isso, aqui eu sou estrangeira, aqui eu sou Medeia, aqui a minha boca me denuncia, a máscara não cobre o sotaque, um dia no fast-food de pizza, um homem branco anglo-saxão me identifica, go back to mexico where you belong, pego a pizza e caio fora, aulas de geografia são um luxo, verifico.
(acho que não disse nessa newsletter ainda que sim, eu vou pro México! a maravilhosa poeta Paula Abramo traduziu primorosamente meu último livro de poesia, que será publicado pelas Ediciones El Humo em breve, com o título Oswald le pide a Tarsila que le lave los calzones. ¡me encanta!)
uma amiga minha que está na França, a fotógrafa e arquiteta Clarissa Aburachid, me manda uma tradução que ela fez pro francês de um poema meu. na língua brasileira ele é assim:
o brasil não existe
existem os brasileiros
ela me diz que está sentindo a necessidade de se reafirmar como brasileira lá. a mesma vontade que eu sinto aqui. então ela fez uma antropofagia comendo-me a mim, a Tarsila, a Paulo Mendes da Rocha, numa colagem maravilhosa que mistura tudo isso, bem temperadinha.
brazil doesn’t exist
brazilians do
vim pra cá pra estudar imagens da identidade nacional na literatura brasileira. olho no espelho. leio, escrevo, penso. só isso que faço. no fim do dia nem tylenol resolve a dor de cabeça. trocar de língua como quem zapeia canais. acender e desligar o interruptor. dar aula de espanhol pra quem fala inglês e impedir a todo custo que o português saia pra dar uma voltinha. teacher, what is escritorio? escritorio es el lugar que utilizamos para trabajar. un escritorio es como la serie con Steve Carrel. escritorio es un office. no, I’m sorry, escritorio es desk. amiga, prestenção.
leio Cantigas de Amigo e de Amor galego-portuguesas. verifico que as de amor são o equivalente ao sertanejo sofrência. as de amigo são o feminejo. mulheres putassas que foram traídas ou lamentando a ausência do amado, ó, que se foi.
leio Fernão Lopes, o Leo Dias da idade média, que fofocava horrores sobre a vida dos reis escrevendo crônicas.
leio Nísia Floresta, a primeira feminista no Brasil, mas que hoje em dia com certeza votaria no Partido Novo (obrigada amiga Marcela Lemos por esse maravilhoso apontamento).
leio Pagu, a primeira mulher brasileira a ser uma presa política. a escritora de fragmentos. de flashes. uma intelectual que me seduz com sua pena e sua forma. aprendo muito, aprendo sempre.
leio Ana Plácido, injustamente ofuscada pelo amante Camilo Castelo Branco, e penso em como Plácido inaugura um estilo que muitíssimo me interessa, a escrita teórica-acadêmica inundada por subjetividade, ela escreve ao mesmo tempo um ensaio um artigo um diário uma carta, ela é teoria e literatura, ela é análise e intimidade, ela é a Chris Kraus antes da Chris Kraus, o Roland Barthes, a Maggie Nelson. tenho consciência: é aí que o meu alvo está.
assim começaram os próximos cinco anos da minha vida, brasileira morando nos Estados Unidos, numa cidade chamada Florescimento. vou tentar atualizar mais essa newsletter, acho que será um espaço bom pra compartilhar essas reflexões, o que você acha?
Em fevereiro, dou a primeira aula da série Por que ler os clássicos, do excelente Ateliê Lume, tocado pela maravilhosa Julia Arantes. A cada mês, um clássico da literatura mundial será lido, e eu começo em fevereiro compartilhando minhas impressões sobre a obra-prima Parque Industrial (1933), de Patrícia Galvão. Mais informações e inscrições aqui, no site do Lume.
Saudações BKO! [...] Li contente sobre a metamorfose de Frans, ... digo, Paulo Honório, cuja obra também me transformou recentemente. [...] Paulo Honório não encontrou sua satisfação nas terras de São Bernardo, não encontrou sua satisfação em Madalena, Paulo Honório tentou buscar sua satisfação nas letras, nas narrativas de sua existência e de suas dores. Talvez seja essa a tragédia desse romance: a dor de existir na solidão de suas dores e ainda assim, solitário, tentando se encontrar, até seu fim, tornando-se a cada descoberta de si, um homem-monstro, convivendo com a derrocada, com devaneios, com seus fantasmas e os fantasmas de seus mortos.
Leonardo Luis Corrêa, 09.03.21
Bruna, sou fã de tuas newsletters e, devido à demora na chegada da #5, achei que você, sobrecarregada por outras atividades, havia desistido de publicá-la. Foi uma alegria quando abri minha caixa de entrada e a vi. Parabéns, pode demorar mas não deixe de publicar.
Ramon Badoch, 06.03.21
Quem conhece o oceano não se contenta com a profundidade ilusória da piscina.
Vem nadar comigo!
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com amor, Bruna K
p.s. leia as outras cartinhas aqui.
p.s. 2. você me acha na internet aqui.