Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o Mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.
Luís Vaz de Camões
Brasil, 15 de outubro de 2020.
Querida leitora, querido leitor,
Há oito anos exatos, 15 de outubro de 2012, escrevi um poema para meus professores do ensino médio. Fiz uma cópia à mão para cada um em folhas coloridas, enrolei a página com uma fita, grampeei um sonho de valsa no papel e entreguei o presente. Nesse momento, estava viciada em escrever sonetos, só lia Camões. Vivia a vida em decassílabos, medindo versos, tamborilando mesas enquanto contava até dez. O poema, um soneto, terminava assim: Mestre, és quem me ensina com louvor / Fonte infinita de luz – Professor.
Na mesma época, descobri a obra poética de Olavo Bilac, grande professor que me ensinou muito sobre ritmo, imagem, elegância. Um de seus sonetos, em especial, foi muito marcante, e, desde aquele 2012, volto a ele em todo outubro, alguns dias antes do meu aniversário. Seu título é Fogo Fátuo e ele é assim:
Me espanto todos os anos lendo esses versos. Bilac imortalizou a angústia e o prazer do que é ser um artista – e um artista envelhecendo. Criar mundos e ideias, ter uma ambição impraticável, fugir da realidade para mirar o impossível: é melancolia, é febre, é choro. A Bruna de 17 anos que encontrou conforto nessas palavras já imaginava que a vida dedicada à arte seria cheia de contradições, tesão e terror, fúria e fome, dor e delícia.
Sei disso não porque me lembro, mas porque li o que ela escreveu no dia 17 de outubro de 2012, um dia antes do seu aniversário. Sempre em decassílabos, escritos a lápis na página ao lado da cópia de Bilac: A urgência dos ponteiros me consome; / E me queima por dentro, sem barulho / E me arrasta pro buraco, meu orgulho / Morro então sem louvor e sobrenome. // Já sinto minhas almas muito antigas… / Não conseguirei apartar tantas brigas. Em outro poema, do dia 18, leio, emocionada, verificando um deslize na minha metrificação adolescente: Um feliz tão triste de desilusão!
Por que volto ao passado? Não sei, essa é uma pergunta que a minha terapeuta também me faz sempre. 2020 está tão caótico que talvez esteja procurando respostas num oráculo às avessas. Ler a mim mesma, investigar diários antigos, entrar em contato com a menina morta que já fui tem sido um exercício instigante. Em alguns textos, vejo que eu já estava ali, como a fruta dentro da casca que Bento Santiago viu em Capitolina. Em outros, não reconheço nem a letra, nem a memória, nem a sensação.
Quando escrevi tudo isso, era uma aluna que, no fundo, já desejava ser professora. Em 2012, ainda não tinha coragem para admitir publicamente que as letras seriam meu futuro inevitável, mas o diário já sabia disso. Aquele gesto afetivo e poético direcionado aos docentes, tão importantes para a minha formação humana e acadêmica, era uma tentativa de comunicação: também quero ser como vocês. Meu sonho era entrar na sala dos professores e permanecer lá, imóvel. Ouvindo.
A docência é nobre, digna, difícil, complexa, a docência exige força, luta, garra, resistência, a docência pede tesão, paixão, fogo, brilho, a docência cansa, exaspera, exausta, machuca, a docência é desvalorizada, julgada, violentada, diminuída, a docência convoca à empatia, ao respeito, à diferença, à diversidade, a docência é o denominador comum em todas as profissões, sem ela não há médicoadvogadoengenheiro sem ela não há sociedade, a docência é continuar sempre, mesmo no Brasil mesmo em 2020, a docência é dizer sim.
Em 2020, oito anos depois e já com seis anos de docência, me considero mais aluna do que professora. Todos os dias aprendo alguma coisa. Seja pesquisando para preparar aulas, seja quebrando a cabeça para responder dúvidas escabrosas, seja conhecendo pessoas tão diferentes de mim – mais jovens, mais velhas. Em todas as instituições que já dei aula sempre sou confundida com os alunos. E acho isso lindo. Porque nunca deixarei de ser aluna.
Hoje, comecei o dia no tablado. Depois que terminar de escrever isso, preciso preparar a próxima aula. Daqui a três dias, faço 25 anos. Fico pensando o que a Bruna do futuro achará de mim, se ela me lerá como leio a Bruna do passado, se o que escrevo hoje fará sentido daqui a algum tempo. Escrever sobre mim é minha maior vaidade: um presente que dou para a Bruna que está por vir.
Lembro sempre do Mário de Andrade, libriano de 9 de outubro: Todo escritor acredita na valia do que escreve. Si mostra é por vaidade. Si não mostra é por vaidade também. Libra é o signo da beleza e do amor, regido por Vênus. Além do Mário, outros librianos: Choderlos de Laclos (18/10), Fernanda Montenegro (16/10), Oscar Wilde (16/10) Pedro Almodóvar (25/10), Vinicius de Moraes (19/10), Arthur Rimbaud (20/10). Por que estou escrevendo isso? Não sei.
Dedico essa carta a todas as professoras e todos os professores que já tive na vida. Que um dia eu possa ser como vocês.
Belos trabalhos, fortes palavras.
- Myriam Ávila, 17.08.20
Oi, Bruna! Escuto sua voz ao ler os textos! <3
- Sílvia Lazzaretti, 18.08.20
Bruníssima, muito obrigado pelas cartas que me encaminhou! Impressionante o texto do Lúcio Cardoso sobre Minas Gerais. Essa Minas draconiana está muito bem retratada nas memórias do Pedro Nava!*
- Antônio Sérgio Bueno, 18.08.20
*Sérgio fez uma excelente palestra sobre o Nava no Letra em Cena, que você pode assistir neste link.
Quem conhece o oceano não se contenta com a profundidade ilusória da piscina.
Vem nadar comigo!
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com amor, Bruna K
p.s. leia as outras cartinhas aqui.
p.s. 2. você me acha na internet aqui.