Eu sou a faca e o talho atroz!
Eu sou o rosto e a bofetada!
Eu sou a roda e a mão crispada,
Eu sou a vítima e o algoz!
Charles Baudelaire (trad. Ivan Junqueira)
Brasil, 17 de agosto de 2020.
Querida leitora, querido leitor,
Estou atrasada. Ao escrever isso, lembro dos versos iniciais da RL 50, coletânea que meu querido professor Luís Alberto Brandão (que muito me honra assinando essa cartinha) organizou nos cinquenta anos da Revista Literária da UFMG, processo que tive o prazer de participar. Chego atrasada ao século XX. / Tarde demais / para amar a máquina. Rita Espeschit, tendo escrito isso em 1989, me fez entender melhor o século XXI. Estamos sempre atrasados. Aceito isso. E sigo em frente.
Enviei a última cartinha há mais de um mês, e desde então, muita coisa aconteceu, sobretudo do meu próprio trabalho – acho que nunca trabalhei tanto como agora. Por isso, e para não criar expectativas que não sou capaz de cumprir, essa cartinha passará a ser mensal.
Hoje falaremos de poetinhas, portuñol, e lembraremos de um casal impossível na literatura brasileira: Clarice Lispector e Lúcio Cardoso. Clarice se apaixonou por Lúcio, que não a correspondeu – ele era homossexual. Apesar do desenlace amoroso, os dois foram grandes amigos e, aliás, foi Lúcio quem deu a ela o título de seu primeiro livro, Perto do coração selvagem, uma citação de James Joyce. Prontos para esse mergulho?
🔹 Honradíssima, tive o prazer de participar do Letra em Cena, evento tão querido em BH, agora no formato online, que foi assistido pelo Brasil inteiro. Se deem esse presente de ouvir Marina Colasanti (!) falar de sua amiga querida Clarice Lispector. Entre a conversa deliciosa que a escritora teve com José Eduardo Gonçalves, foi exibida uma performance que fiz a partir do conto “Tentação”. A live está no YouTube do Minas Tênis Clube e a performance está no meu canal.
🔹 Nos quarenta anos da morte de Vinicius de Moraes, falei ao jornal O Tempo da minha relação com a obra do poetinha, e a sua importância na literatura brasileira do século XX. Leia aqui.
🔹 A convite do Sesc Palladium, fiz uma performance a partir do meu livro CARNE para o evento Sarau Literário, ao lado de Andrezza Xavier, Auíta Torres e Lívia Aguiar. A live está na íntegra no instagram do Sesc.
🔹 Falando em livros, o maravilhoso Grupo Editorial Letramento está comemorando 7 anos de existência e está com o catálogo todo com 25% de desconto! Vocês podem comprar meus livros Oswald pede a Tarsila que lave suas cuecas (2019), Anticorpo (2017) e Poétiquase (2015) com desconto no site da editora.
🔹 Cambaleando no portuñol e lendo poemas em português y en español, dei uma entrevista ao Colectivo Poetiza, grupo de escritoras colombianas que tem feito diversas lives incríveis com mulheres da literatura de toda a América Latina. É possível assistir no instagram @colectivo.poetiza.
🔹 Participei do episódio de abertura da segunda temporada do podcast Leituras de Cabeceira, falando, de maneira muito apaixonada, dos livros da minha vida, o que tenho lido recentemente e o que está no meu horizonte de leitura. Mencionei obras de Natasha Felix, Clarice Lispector, Octavio Paz, Lúcio Cardoso, Choderlos de Laclos, Leonardo Villa-Forte, Ana Guadalupe, Cidinha da Silva, Hilda Hilst e Roland Barthes. Ouça aqui.
🔹 A convite das pesquisadoras Juliana Caldas e Aline Almeida, participei do “Manifesto-Mosaico: como suturar com fios desencapados?”, publicado na Revista Opiniães, da USP, ao lado de diversos artistas e pesquisadores que admiro imenso, como Celia Pedrosa, Guilherme Gontijo Flores e Tarso de Melo. Meu fragmento se chama MANIFESTO DA ONÇA e pode ser lido, junto com os outros mosaicos, neste link.
Depois de meses lendo devagarinho, como se degustasse uma refeição cuidadosamente preparada, finalizei Crônica da Casa Assassinada (1959), de Lúcio Cardoso, uma obra-prima que me transformou como leitora e escritora. Apoteose de Minas Gerais, esse romance foi uma aula: eu, mera aluna, estava aos pés do grande mestre, aprendendo com suas técnicas narrativas, perdendo o fôlego a cada frase genial, a cada construção absurda de personagem. Êxtase absoluto. Trouxe aqui o trecho de uma entrevista que Lúcio deu em 1960, na época do lançamento. Desde que li essas palavras, me comprometi a carregá-las comigo, como uma postura artística, um dever. Como se ele me passasse a tocha olímpica e eu me incumbisse de manter o seu fogo aceso.
Meu movimento de luta, aquilo que busco destruir e incendiar pela visão de uma paisagem apocalíptica e sem remissão, é Minas Gerais. Meu inimigo é Minas Gerais. O punhal que levanto, com a aprovação ou não de quem quer que seja, é contra Minas Gerais. Que me entendam bem: contra a família mineira. Contra a literatura mineira. Contra a concepção de vida mineira. Contra a fábula mineira. Contra o espírito bancário que assola Minas Gerais. Enfim, contra Minas, na sua carne e no seu espírito. Ah, mas eu a terei escrava do que surpreendi na sua imensa miséria, no seu imenso orgulho, na sua imensa hipocrisia. Mas ela me terá, se for mais forte do que eu, e dirá que eu não sou um artista, nem tenho o direito de flagelá-la, e que nunca soube entendê-la como todos esses outros – artistas! – que afagam não o seu antagonismo, mas um dolente cantochão elaborado por homens acostumados a seguir a trilha do rebanho e do conformismo, do pudor literário e da vida parasitária. Ela me terá – se puder. Um de nós, pela graça de Deus, terá de subsistir. Mas acordado.
Ser mineiro é se sentir preso, encurralado, carregando conosco os pecados dos que vieram antes de nós. Ser mineiro é sentir culpa. Esse livro sou eu, é a história da minha família, dessa terra com raízes corrompidas que chamamos de berço. Nascer e crescer aqui me fez ser quem eu sou – todas as minhas qualidades e os meus defeitos são espelhos indefectíveis de Minas Gerais.
Mas não reclamo, não. Minas me feriu mortalmente, acabou com a minha vida, mas também a começou. Minas Gerais me deu Lúcio Cardoso, Carlos Drummond de Andrade, Fernando Sabino, Carolina Maria de Jesus, Claudio Manoel da Costa, Conceição Evaristo, Ana Martins Marques. E pelo peso de todos esses presentes, este solo envenenado pode ter o que quiser de mim: a minha carne, a minha sanidade mental. A minha obra. Porque tudo que escrevo é atravessado por essa faca de dois gumes que me rasga e me remenda, ligando-me a todos que vieram antes e aos que virão depois. Talvez daí também a mania de querer transgredir: um desejo inconsciente de tacar fogo em tudo, pra depois recomeçar do zero. Do zero e meio.
Obrigado, querida, pelo envio da Carta e suas belas mensagens. Bem lembrado o poema de Drummond, fonte de amor erótico.
- Milton Hatoum, 09.07.20
Acompanhando e me divertindo bastante com esse horizonte literâneo. Tenho me demorado um caldo nele, tentando consumir o oceano que você manda dentro de cada garrafa, e que não cabe nesse copo que é minha tela de computador. É difícil acompanhar essa atualização que se tem feito pelas redes, pelos poetas e diversos, tentando driblar esses tempos de duplo mal: presidencial e sanitário – essas águas sujas que só elas. Mas você, com toda certeza, está entre as pessoas que têm nos ajudado a mudar junto com o contexto e acompanhar os artistas em suas outras fontes, em seus outros mares. Fora que sempre traz uma boa dosagem de humor e literatura véia, com Drummond, Mário e companhia, etc. e tal. E estou ajudando a divulgar um blog sobre literatura, é o Duras Letras. Enfim, obrigado, abraços, braçadas nesse (a)mar. Rememos!
- Gabriel Reis Martins, 09.07.20
Acompanhando com afetos,
(Sou meio tiazona, amo newsletters, amo carta escrito em folha Tilibra e caneta BIC cristal com pontinha mordida pelos dentes)
- Camila Assad, 13.07.20
Quem conhece o oceano não se contenta com a profundidade ilusória da piscina.
Vem nadar comigo!
Se gostou, me conta; se não, também. É só responder o e-mail. ❤️
com amor,
Bruna K
p.s. leia as duas primeiras cartinhas aqui.
p.s. 2. você me acha na internet aqui.