O erótico é como esse núcleo dentro de mim. — Audre Lorde, trad. Stephanie Borges
Bloomington, 23 de abril de 2024.
Querida pessoa que me lê,
Quem te escreve hoje é outra. Sou eu esta mulher que anda comigo?, pergunta Hilda Hilst em perfeito decassílabo. A mulher não sou eu. E perturbada / A rosa em seu destino, eu a persigo / Em direção aos reinos que inventei. Desde que li esse soneto a primeira vez, há mais de dez anos, penso nas muitas personas que existem dentro da gente. Agora, porém, é de uma mudança diferente que falo: ser outra depois de testemunhar a natureza em sua radicalidade.
No dia 8 de abril de 2024, o céu de Bloomington, onde moro, ganhou um dos maiores espetáculos da terra: um eclipse solar total. Há anos a cidade vem se preparando para esse evento especialíssimo que mudaria a rotina dos seus 80 mil habitantes, recebendo pessoas do mundo todo. Por um alinhamento cósmico, Bloomington estava na linha verde do eclipse, um dos poucos lugares do planeta com a visão perfeita da lua beijando o sol. Além de tudo, teríamos 4 minutos e 2 segundos de totalidade, mais do que a maioria dos locais ao redor do mundo.
Totalmente por acaso, eu estava no lugar certo & na hora certa. Para narrar o inenarrável dessa absoluta contemplação, recorro ao que escrevi no calor do momento, no meu diário. É uma Bruna estupefata que conta:
08.04.24
Hoje foi um dos dias mais importantes da minha vida. Sinto que lembrarei disso até morrer.
O eclipse é uma coisa misteriosa, uma bola de gude prateada, pérola negra, buraco assombroso da natureza, portal entre a realidade e o divino, um cu resplandecente. Vi Deus hoje por quatro minutos. Chorei emocionada com a felicidade de estar aqui e agora. Já valeu a pena ter escolhido estudar em Bloomington só pela oportunidade de ter contemplado, com tanta clareza, esse eclipse, e ter presenciado o fenômeno da natureza Janelle Monáe. “No I’m not the same”. Que show maravilhoso, a arte delu, a entrega, a comunicação com o público, a consciência de que somos apenas testemunhas do poder da natureza. Depois disso não dá pra viver do mesmo jeito.
The age of pleasure.
Isso me leva a outro fênomeno natural que presenciei nesse dia: Janelle Monáe. Eu já era fã há muito tempo, ouvindo suas músicas como quem lê manifestos, porque é isso que elas, também, são. Janelle subiu ao palco imediatamente após o eclipse, e, vendo a plateia ainda grogue da surra de beleza fresca nos nossos corpos, nos levou até o limite. Um gozo que não acaba: o prazer.
Prazer e erotismo são assuntos recorrentes nas coisas que escrevo (aliás, quem aí leu O presidente pornô?), e muitas vezes as pessoas se ofendem porque associam o texto de gozo (um beijo, Roland Barthes!) ao sexo. O sexo é, na verdade, só uma desculpa pra gente falar do que realmente importa: o gozo, o prazer.
No ensaio citado na epígrafe dessa carta, Usos do erótico: o erótico como poder (1978), Audre Lorde discute os diversos poderes do erótico para além do sexual. Para termos uma vida plena, é preciso ter consciência e lutar pelo prazer nas diversas atividades do nosso cotidiano. Sobretudo para nós mulheres, a quem o erotismo foi historicamente negado, Lorde propõe que abracemos a potência erótica que existe em ler, escrever, cozinhar, lavar roupa, caminhar, sentir o sol esquentar nossas peles e a lua inundar nossos hormônios.
Janelle Monáe, se inserindo nessa linhagem de grandes pensadores do erotismo, elabora proposta similar na obra-prima The Age of Pleasure (2023). Em um título ambíguo que compreende tanto a era quanto a idade do prazer, Monáe nos estimula a gozar em tudo que pudermos. Em vez de caminhar, flutuar — buscando the rush, aquela fúria palpitante que nos faz levantar da cama e viver. O gozo. O prazer.
É importante dizer que essa é uma discussão racializada, pois Monáe e Lorde trazem o erotismo por uma perspectiva negra; e também pensada a partir da experiência LGBTQIAP+, pois Barthes era um homem gay, Lorde uma mulher lésbica e Monáe uma pessoa não-binária e pansexual. Afinal, parte central dos seus argumentos é que o erotismo é uma força que perturba e questiona o sistema patriarcal, cishetéro e branco.
A teoria é linda e a prática é difícil, eu sei. Não é nada fácil permitir o erótico chegar enquanto a gente lava louça ou declara imposto de renda. Mas tenho me esforçado pra aprender a aplicar essa filosofia, entendendo que até as coisas mais chatas da vida são um presente que dou pra mim mesma: cada burocracia resolvida é menos stress e mais tempo pro prazer.
E me dar conta de tudo isso depois de ver um eclipse mudou as muitas mulheres que vivem dentro de mim.
I’m looking at a thousand versions of myself. And we’re all fine as fuck. — Janelle Monáe
No Brasil, em carne & osso
Sim: estou indo pro Brasil! Nos meses de férias da universidade, volto pra minha terra, para trabalhar em projetos de pesquisa. E queria convidar vocês pra uma oficina super especial que vou ministrar no Estratégias Narrativas, em BH, espaço fundado pela maravilhosa Laura Cohen: um templo de dedicação às artes no icônico edifício Maletta. Sim, lá mesmo, onde um mineiro fez amizade com os paulistas — em 1924, quando Carlos Drummond de Andrade conheceu Tarsila do Amaral, Oswald e Mário de Andrade.
A oficina se chama ESCREVER À BRASILEIRA e nela eu compartilho as leituras e ideias que vêm pipocando na minha cabeça com a pesquisa do doutorado, sobre identidade nacional e erotismo nas artes brasileiras. Todas as informações (ementa, datas, valores) estão nesse post, é só clicar:
Espero encontrar vocês pra gente ler e escrever do nosso jeitinho brasileiro!
No Brasil, em imagem & som
Se você não está em BH e vai perder a oficina, não fique triste. Participarei de um evento online e gratuito dia 30 de abril! O Clube de Leitura do Sesc Osasco, com curadoria e coordenação do Luiz Bras, escolheu O presidente pornô como obra do mês, pois o tema desse ano é Futuros Insólitos, lendo sempre distopias de autores brasileiros.
Fiquei muito feliz com o convite e espero ver vocês lá! Todas as informações e inscrições estão neste link e no post do Sesc:
Carta na garrafa
você escreve com sensualidade, gostoso demais!
— Carolina Dini, 15.03.24
Querida Bruna Kalil, começo por sublinhar o adorável neologismo "anarquivista" do meu colega e amigo Reinaldo Marques. Que bela Certidão de Nascimento esta sua: "um ser que se funda pela leitura ("sou um ser humano que lê"). É isso mesmo que você escreveu: "Quanto mais se lê, mais falta para ler", do que se deduz que, para quem não lê nada , não falta nada ou falta tudo, que "tudo e nada nada são". Se existe Niilismo, vale criar também o neologismo "Tudismo".
— Antônio Sérgio Bueno, 17.03.24
Gostei muito das 5 dicas. Já as aplico todas! ❤️A primeira é uma das melhores. Como eu leio a trabalho muita bíblia sempre, eu enfio o máximo possível de livros curtos e maravilhosos para dar aquele gás que só a sensação de jornada concluída dá. Além do que, os livros curtos e de rápida leitura, me dão uma sensação que é parecida com um mergulho no mar num dia quente. Aquele mergulho rápido que refresca a alma e coloca o corpo no lugar… Eu adoro…
— Igor Reyner, 22.03.24
Quem conhece o oceano não se contenta com a profundidade ilusória da piscina. Vem nadar comigo!
Se gostou, me conta; se não, também. É só responder o email. ❤️
com amor, Bruna K
p.s. leia as outras cartinhas aqui.
p.s. 2. agora eu tenho um site, depois vai lá ver que lindo que ficou.
Que notícia mara essa da oficina em BH! E que delícia te ler e sair anotando várias referências pra ler logo mais.
Incrível como a libido está em tantas outras coisas da vida além do sexo, né? Tenho pensado e discutido muito isso na análise: a necessidade de alimentar e reacender essa pulsão de vida que, tantas vezes, em decorrência do caos do mundo, adormece dentro da gente. Mas é justamente neste caos que é preciso aprender a dançar, fazer graça e deixar a emoção livre. Que a gente nunca se esqueça de nada disso!